Nas imagens que nos oferta por força de sua profissão, Bergman mostra muitos elementos, temas e obsessões presentes em seu diálogo interno. Não é possível produzir uma tese sobre todo mundo que desejamos compreender. Até porque, traduzir Bergman, traduzir alguém, demanda uma postura ativa daquele que acredita que basta ler a tradução que alguém fez. Ajuda, mas não resolve. Nada substitui a experiência! Mesmo que nos abríssemos às imagens que Bergman nos oferece, temos que compará-las com nossas próprias imagens ou, finalmente, iniciar a busca por nossas próprias imagens, paisagens internas que deixamos de lado ou nunca buscamos. Não é por acaso que temos dificuldade com as imagens do prólogo de Persona.
Na cultura das imagens em que vivemos hoje em dia, nos sentimos paradoxalmente sem inspiração quando elas próprias não nos apresentam um significado rápido e pré-digerido. Na verdade, estranhamente, nessa cultura das imagens, mergulhamos nelas, entretanto não as enxergamos. Fugimos de seu lado potente, buscamos seu lado morno, inócuo. Como nós, elas podem ser potentes e autênticas ou mornas e irrelevantes. Para que serve o cinema afinal? Outro cineasta, o italiano Bernardo Bertolucci, nos dá uma dica: “O cinema me serve antes de mais nada para dar um estilo à minha vida, e depois até para não deixar que eu enlouqueça. Serve para interpretar uma realidade que me parece misteriosa e desordenada. Enfim, me serve para pôr um pouco de ordem nesta espécie de caos que sinto dentro de mim e fora de mim”. (1)
Estórias (e Histórias) Lineares Com Finais Felizes
“Quando Duas Mulheres Pecam” foi o título que escolheram para Persona (1966), filme dirigido por Ingmar Bergman, quando foi lançado no Brasil. Criou-se com isso a falsa impressão de uma união sexual entre as duas protagonistas. Não é que um filme com duas mulheres, que às vezes se tocam, não pudesse ter uma conotação sexual. A questão é que a temática do filme ultrapassa em muito esse detalhe. Trata-se do questionamento das máscaras que somos forçados a vestir na vida em sociedade.
Estórias (e Histórias) Lineares Com Finais Felizes
“Quando Duas Mulheres Pecam” foi o título que escolheram para Persona (1966), filme dirigido por Ingmar Bergman, quando foi lançado no Brasil. Criou-se com isso a falsa impressão de uma união sexual entre as duas protagonistas. Não é que um filme com duas mulheres, que às vezes se tocam, não pudesse ter uma conotação sexual. A questão é que a temática do filme ultrapassa em muito esse detalhe. Trata-se do questionamento das máscaras que somos forçados a vestir na vida em sociedade.
Persona não segue uma trajetória linear e frequentemente não sabemos se os personagens estão acordados ou sonhando. Ao contrário de muitos de seus filmes, com Persona, Bergman acaba gerando confusão e desinteresse nas mentes daqueles mais preguiçosos e/ou que se sentem desconfortáveis com todo pensamento que não é linear. Tudo isso não os instiga! O patético título com que foi lançado no Brasil na época dá bem a dimensão do nível de incompreensão – além dos interesses financeiros dos distribuidores. Na verdade, o problema das abordagens de análise (não tanto das teorias, mas dos teóricos que as manipulam) está em que fomos e continuamos e ser adestrados para esperar informação e acreditar que isso é o suficiente.
Um filme como Persona chama atenção para o fato de que informação é apenas o primeiro degrau. Informação não é cultura e muito menos arte. O importante é a vivência daquele universo proposto pelo filme. Ao invés de esperarmos que as seqüências sejam auto-evidentes, que nos ofereçam as respostas como se enfia uma colher de mingau na boca de um bebê, devíamos procurar mergulhar naquele universo. A ausência dessa atitude se dá porque o ensino da arte é entendido mais como transmissão de informação do que como vivência – não é uma questão de saber sobre ele, mas de viver o universo artístico. E quando se fala em vivência, o que se pede é capacidade de introspecção. Como disse Teixeira Coelho, “quando arte e cultura estão presentes no ensino brasileiro, seja na escola primária seja na universidade, é frequentemente muito mais no caráter de informação do que no de vivência”. (2)
Você Não Está Só
Entretanto, se com toda boa vontade do mundo você não consegue entender Persona, saiba que você está bem acompanhado. Liv Ullman, uma das atrizes principais do filme, admitiu que não estava entendendo nada. Sim, o arqui-outsider Jean-Luc Godard também disse que não compreendeu nada (3). No caso dele isso não quer dizer muito, já que outro arqui-outsider, Pier Paolo Pasolini, como ele também achou fraco o primeiro filme de François Truffaut (Os Incompreendidos, 1959).
Mas Pasolini achou Persona um filme esplêndido, quase completamente imaterial, um “mistério” e extremamente leve. Embora tenha afirmado também que nele, sem espírito crítico algum, Bergman inseriu em seu próprio universo estilístico formas que não lhe eram próprias. Formas difundidas pela cultura “especializada” da época. Apesar de o próprio Godard ter dito o que disse, Pasolini encontrou traços da montagem godardiana. Por outro lado, muitos dos filmes de Pasolini foram reduzidos a clichês sexuais pela sociedade da época - foi então, conta Pasolini, que resolveu fazer filmes mais “difíceis”, para que fosse mais difícil que sua mensagem caísse na cloaca comum dos filmes de entretenimento. Portanto, é curioso que censure Bergman por ter realizado um filme bem distante, em termos de forma, de muitos daqueles que fizeram sua fama nos anos anteriores.
Conclusão, podemos até ler aquilo que os supostos conhecedores (aqueles que escrevem sobre um assunto, mas não citam suas fontes) dizem, mas nada substitui nossa própria visão de mundo. Se você prefere os filmes cheios de clichês, não há nada de errado nisso. Talvez o problema seja quando temos preguiça de procurar nossa vida por entre os clichês em torno dos quais acabamos nos acostumando a viver.
Minha Vida, Meus Clichês
Persona nos empurra e cutuca até o momento do apagamento dos rostos de seus personagens. O que acontece a partir daí se dá dentro de nós, espectadores – em nossa capacidade de introspecção. Portanto, “finais” que apontam para o aberto, como a própria vida o faz. Foi o filósofo francês Gilles Deleuze quem sugeriu que a sensação é o contrário do clichê. Ela se articula tanto ao objeto que é visto quanto ao sujeito que observa. E a sensação está nos corpos, não no ar (num jogo desencarnado da luz e da cor). A sensação age sobre a carne. “A sensação é o contrário do fácil e do pronto, do clichê, mas também do ‘sensacional’, do espontâneo...“ (5). O espectador precisa procurar experimentar um filme como experimenta seus próprios sonhos ou pesadelos. O outro lado do problema é perceber a natureza dúbia da imagem, que oscila entre a sensação e o clichê. Não é questão de ativar uma consciência intelectual, mas uma “profunda intuição vital”...
“Por um lado a imagem está sempre caindo na condição de clichê: porque se insere em encadeamentos sensório-motores, porque ela própria organiza ou induz seus encadeamentos, porque nunca percebemos tudo o que há na imagem, porque ela é feita para isto (para que não percebamos tudo, para que o clichê nos encubra a imagem...). Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê, na qual todos os poderes têm interesse em nos encobrir as imagens, não forçosamente em nos encobrir a mesma coisa, mas em encobrir alguma coisa na imagem. Por outro lado, ao mesmo tempo, a imagem está sempre tentando atravessar o clichê, sair do clichê. Não se sabe até onde uma verdadeira imagem pode conduzir: a importância de se tornar visionário ou vidente. Não basta uma tomada de consciência ou uma mudança nos corações.”(...)”. Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não se vê na imagem, tudo o que foi subtraído dela para torná-la ‘interessante’. Mas às vezes, ao contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o inteiro.” (6)
É apenas nosso vício por estórias lineares e finais felizes que, por preguiça, exige que um final previsível (clichê, estereótipo) surja na tela e se realize diante de nós – o que também não quer dizer que todo final feliz seja uma negação da obra indeterminada ou aberta; a questão não se restringe à obrigatoriedade de finais infelizes. É por isso que toda obra aberta incomoda a muitos – que reclamam e depreciam muito da maior parte a arte contemporânea. Porque os espectadores são convidados a realizar, mesmo que apenas em pensamento, alguma coisa que tem medo de fazer – são convidados a agir. É como se a possibilidade de fugir das responsabilidades de um ser realizador e produtor de sentidos e sensações fosse a sedução daquilo que se convencionou chamar de entretenimento – e não estou me referindo aqui as responsabilidades pesadas do dia-a-dia. Talvez seja por isso que Persona cansa a muitos: este filme é cinema. Porque não mastiga e cospe a estória direto na garganta dos bebês (do ponto de vista de Hollywood, o público). Persona, de Bergman, não é entretenimento – sem ressentimentos, simplesmente porque o entretenimento tem outros objetivos.
Notas:
Você Não Está Só
Entretanto, se com toda boa vontade do mundo você não consegue entender Persona, saiba que você está bem acompanhado. Liv Ullman, uma das atrizes principais do filme, admitiu que não estava entendendo nada. Sim, o arqui-outsider Jean-Luc Godard também disse que não compreendeu nada (3). No caso dele isso não quer dizer muito, já que outro arqui-outsider, Pier Paolo Pasolini, como ele também achou fraco o primeiro filme de François Truffaut (Os Incompreendidos, 1959).
Mas Pasolini achou Persona um filme esplêndido, quase completamente imaterial, um “mistério” e extremamente leve. Embora tenha afirmado também que nele, sem espírito crítico algum, Bergman inseriu em seu próprio universo estilístico formas que não lhe eram próprias. Formas difundidas pela cultura “especializada” da época. Apesar de o próprio Godard ter dito o que disse, Pasolini encontrou traços da montagem godardiana. Por outro lado, muitos dos filmes de Pasolini foram reduzidos a clichês sexuais pela sociedade da época - foi então, conta Pasolini, que resolveu fazer filmes mais “difíceis”, para que fosse mais difícil que sua mensagem caísse na cloaca comum dos filmes de entretenimento. Portanto, é curioso que censure Bergman por ter realizado um filme bem distante, em termos de forma, de muitos daqueles que fizeram sua fama nos anos anteriores.
Conclusão, podemos até ler aquilo que os supostos conhecedores (aqueles que escrevem sobre um assunto, mas não citam suas fontes) dizem, mas nada substitui nossa própria visão de mundo. Se você prefere os filmes cheios de clichês, não há nada de errado nisso. Talvez o problema seja quando temos preguiça de procurar nossa vida por entre os clichês em torno dos quais acabamos nos acostumando a viver.
Minha Vida, Meus Clichês
Persona nos empurra e cutuca até o momento do apagamento dos rostos de seus personagens. O que acontece a partir daí se dá dentro de nós, espectadores – em nossa capacidade de introspecção. Portanto, “finais” que apontam para o aberto, como a própria vida o faz. Foi o filósofo francês Gilles Deleuze quem sugeriu que a sensação é o contrário do clichê. Ela se articula tanto ao objeto que é visto quanto ao sujeito que observa. E a sensação está nos corpos, não no ar (num jogo desencarnado da luz e da cor). A sensação age sobre a carne. “A sensação é o contrário do fácil e do pronto, do clichê, mas também do ‘sensacional’, do espontâneo...“ (5). O espectador precisa procurar experimentar um filme como experimenta seus próprios sonhos ou pesadelos. O outro lado do problema é perceber a natureza dúbia da imagem, que oscila entre a sensação e o clichê. Não é questão de ativar uma consciência intelectual, mas uma “profunda intuição vital”...
“Por um lado a imagem está sempre caindo na condição de clichê: porque se insere em encadeamentos sensório-motores, porque ela própria organiza ou induz seus encadeamentos, porque nunca percebemos tudo o que há na imagem, porque ela é feita para isto (para que não percebamos tudo, para que o clichê nos encubra a imagem...). Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê, na qual todos os poderes têm interesse em nos encobrir as imagens, não forçosamente em nos encobrir a mesma coisa, mas em encobrir alguma coisa na imagem. Por outro lado, ao mesmo tempo, a imagem está sempre tentando atravessar o clichê, sair do clichê. Não se sabe até onde uma verdadeira imagem pode conduzir: a importância de se tornar visionário ou vidente. Não basta uma tomada de consciência ou uma mudança nos corações.”(...)”. Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não se vê na imagem, tudo o que foi subtraído dela para torná-la ‘interessante’. Mas às vezes, ao contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o inteiro.” (6)
É apenas nosso vício por estórias lineares e finais felizes que, por preguiça, exige que um final previsível (clichê, estereótipo) surja na tela e se realize diante de nós – o que também não quer dizer que todo final feliz seja uma negação da obra indeterminada ou aberta; a questão não se restringe à obrigatoriedade de finais infelizes. É por isso que toda obra aberta incomoda a muitos – que reclamam e depreciam muito da maior parte a arte contemporânea. Porque os espectadores são convidados a realizar, mesmo que apenas em pensamento, alguma coisa que tem medo de fazer – são convidados a agir. É como se a possibilidade de fugir das responsabilidades de um ser realizador e produtor de sentidos e sensações fosse a sedução daquilo que se convencionou chamar de entretenimento – e não estou me referindo aqui as responsabilidades pesadas do dia-a-dia. Talvez seja por isso que Persona cansa a muitos: este filme é cinema. Porque não mastiga e cospe a estória direto na garganta dos bebês (do ponto de vista de Hollywood, o público). Persona, de Bergman, não é entretenimento – sem ressentimentos, simplesmente porque o entretenimento tem outros objetivos.
1. Bernardo Bertolucci, cineasta italiano do pós-guerra, fala sobre cinema em Para Que Serve o Cinema?, Documentário de Sandro Lai, extra (sem data) que integra o dvd de La Luna (1979), filme dirigido por Bertolucci. Versátil Home Vídeo, 2006.
2. Comentários do Crítico de Cultura Teixeira Coelho em “Oficinas Culturais na TV”, capítulo “Cultura Para Quem Precisa”. TV Cultura de São Paulo, 27/07/ 2002.
3. GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard Des années mao aux années 80. Flammarion - Collection Champs Contre-Champs. In L'absurde et le réel: Jean-Luc Godard à propos de Persona d'Ingmar Bergman. Manifeste Revue Moderne - numero 2 – 2002. http://revuemanifeste.free.fr/numerodeux/godard-absurde.html
4. JOUBERT-LAURENCIN, Hervé (org.). Pier Paolo Pasolini. Écrits sur le Cinéma. Petits Dialogues Avec les Films (1957-1974). Paris: Cahiers du Cinéma, 2000. Pp. 44 e 166.
5. DELEUZE, Gilles. Logique de la Sensation. Paris: Editions de la Différence, vol.I, 1980. P. 27.
6. ----------------------. Cinema II: A Imagem-Tempo. Tradução Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. Pp. 32-3.
2. Comentários do Crítico de Cultura Teixeira Coelho em “Oficinas Culturais na TV”, capítulo “Cultura Para Quem Precisa”. TV Cultura de São Paulo, 27/07/ 2002.
3. GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard Des années mao aux années 80. Flammarion - Collection Champs Contre-Champs. In L'absurde et le réel: Jean-Luc Godard à propos de Persona d'Ingmar Bergman. Manifeste Revue Moderne - numero 2 – 2002. http://revuemanifeste.free.fr/numerodeux/godard-absurde.html
4. JOUBERT-LAURENCIN, Hervé (org.). Pier Paolo Pasolini. Écrits sur le Cinéma. Petits Dialogues Avec les Films (1957-1974). Paris: Cahiers du Cinéma, 2000. Pp. 44 e 166.
5. DELEUZE, Gilles. Logique de la Sensation. Paris: Editions de la Différence, vol.I, 1980. P. 27.
6. ----------------------. Cinema II: A Imagem-Tempo. Tradução Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. Pp. 32-3.