mudo sobre os
dilemas da alma
alemã, ou apenas
mais um filme
de terror?
dilemas da alma
alemã, ou apenas
mais um filme
de terror?
O Outro Mundo e o Mundo dos Vícios
Estamos numa livraria durante a noite, satisfeito com um dia de trabalho proveitoso, o livreiro apaga a luz e se retira. De repente três imagens ganham vida em três quadros na parede. Deles saem o Diabo, a Morte e uma prostituta, que flerta com os dois, incitando inimizade entre eles. Nesse momento o livreiro retorna e acaba desmaiando de susto com a visão daquelas três figuras do outro mundo. Então os três começam a folhear os livros. A partir daí, acompanhamos as histórias que estão lendo, nas quais os mesmos atores e a atriz são os protagonistas. Na primeira história, depois de passar por uma alucinação com uma mulher a quem ajudou a fugir de um marido ciumento, lunático e que desejava matá-la, um homem entra em pânico e morre ao ser informado que ela morrido de cólera. Na segunda história, dois homens disputam a posse da mesma mulher. Um assassinato acontece (um deles enforca o outro com as próprias mãos) e o assassino passa a ser perseguido por visões do homem morto – especialmente a mão dele.
É curioso que
novamente tenham
novamente tenham
colocado a prostituta
ao lado do Diabo e da
Morte. Porém previsível, já
que corrobora a tese machista
(homossexual?) de que
é a mulher que tira
o homem de seu
caminho reto
Na terceira história, um alcoólatra é casado como uma bela e santa mulher, sempre oprimida pelo marido – que bate nela e no gato preto que ela acaricia sem parar. Certo dia, sem o saber, ele leva para sua casa um admirador dela, que logo sede ao assédio do visitante. O marido percebe e, posteriormente, acaba matando a esposa. Esconde o corpo no porão e diz ao admirador que ela viajou para outro país, mas todos na rua já comentam e a polícia será chamada. Durante a busca, sangue começa a jorrar de uma parede. Aberto um buraco, o gato preto sai lá de dentro. A conclusão foi de que o marido emparedou a esposa juntamente com o gato (imagens acima, à direita, e abaixo, à esquerda). Na quarta história, um homem entra numa casa tida como abandonada e encontra um grupo de pessoas que decide nas cartas quem vai morrer – aquele que tirar o ás de espadas. Depois que o visitante caiu morto, o anfitrião volta e se vangloria de que o homem morrer por causa do medo. Então o visitante se levanta, se anuncia como comissário de polícia e deixa a sala com o anfitrião em pânico e prestes a morrer. Na última história, um esposa entediada traz um estranho para o palácio em que mora e passa a flertar com ele. Certo dia, objetos da sala começam a se mover e homens encapuzados atravessam o local. O casal de amantes entra em pânico. No final, ela volta para o marido, o verdadeiro responsável pelo truque. De volta à livraria, assistimos ao livreiro trazendo a polícia e passando por maluco, pois não havia ninguém lá. Já sozinho, ele se aproxima dos quadros e sai correndo quando os três anfitriões demoníacos demonstram que existem mesmo (primeira imagem do artigo).
As várias
nacionalidades
dos escritores sugerem
que a “cara” alemã do
nacionalidades
dos escritores sugerem
que a “cara” alemã do
filme é apenas
um clichê
um clichê
Contemporâneo de O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, direção Robert Wiene, 1920) e Da Manhã à Meia-Noite (Von Morgens bis Mitternachts, direção Kalheinz Martin ou Karl Heinz Martin, 1920), encontraremos em Histórias Estranhas (Unheimliche Geschichten, direção Arthur Robinson, 1919) muitos dos ingredientes do Expressionismo alemão no cinema – consta que a versão atualmente em circulação não é mais do que a colagem de fragmentos que sobreviveram ao tempo. As histórias apresentadas são A Aparição (Die Erscheinung), da escritora alemã com interesse pelo movimento feminista Anselma Heine; A Mão (Die Hand), do escritor alemão de roteiros e histórias de horror de Robert Liebmann; O Gato Preto (Die Schwarze Katze), do escritor romântico-gótico norte-americano Edgar Allan Poe; O Clube do Suicídio (Der Selbstmörderklub), do escritor escocês Robert Louis Stevenson e O Fantasma (Der Spuk), do próprio cineasta, Arthur Robinson (um norte-americano que emigrou para a Alemanha). Embora a última história seja contada em tom de comédia, trata-se de uma espécie de coletânea de contos de terror, as falhas de continuidade são perceptíveis devido aos problemas com a dificuldade em se encontrar uma cópia completa do filme, que é oficialmente dado como perdido.
Histórias Estranhas
repete todos os clichês
do Expressionismo alemão.
Repete inclusive os atores,
muito competentes nos
papéis de personagens
totalmente piradas
Evidentemente, seria muito simplista classificá-lo como pertencente ao Expressionismo apenas porque o filme conta histórias de mistério, terror, fantástico e destino, ou mesmo porque conte com a presença do diabo e da própria morte em pessoa – basta lembrar que A Morte Cansada (Der Müde Tod, direção Fritz Lang, 1921), um clássico do Expressionismo, seria lançado nos Estados Unidos com o título Destiny. Entretanto é inegável que, em certos momentos, a utilização de sombras associadas ao clima de terror evoque diretamente o Expressionismo - ainda que também seja temeroso remeter toda e qualquer sombra a esta corrente estética. A Mão (imagem acima), segunda história daquela noite macabra, antecipa em alguns anos outro clássico expressionista, As Mãos de Orlac (Orlacs Hände, direção Robert Wiene, 1924), onde uma mão passa a comandar os destinos do homem em quem foi implantada. A apresentação de uma história do escritor Edgar Allan Poe poderia igualmente suscitar conexões com o gótico. Pelo menos ao nível da narrativa, já que os cenários não poderiam ser considerados góticos. Sem falar de O Médico e o Monstro (Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde, 1886), de Louis Stevenson. (imagem abaixo, à esquerda, A Aparição)
Não é que o cinema
de Weimar não tenha sido
psicológico, atormentado, repleto
de fantasias aberrantes. A questão
é que ele não pode ser reduzido
a isso, já que também possui
outros elementos
de Weimar não tenha sido
psicológico, atormentado, repleto
de fantasias aberrantes. A questão
é que ele não pode ser reduzido
a isso, já que também possui
outros elementos
De fato, Thomas Elsaesser observa que embora o Expressionismo no cinema alemão tenha alguma expressão, a quantidade reduzida de filmes não permite a generalização dessa estética como aquela que melhor traduz o espírito alemão. Mais coerente seria chamar de “cinema de Weimar” ao conjunto das produções daquele período dito expressionista – entre 1919 e 1933, espaço de tempo chamado de República de Weimar. Durante o período de Weimar, o cinema alemão também explorava outros filões (como a comédia, a opereta, os épicos e o melodrama), alcançando um total de espectadores alemães infinitamente superior ao alcançado pelo punhado de filmes expressionistas produzidos no mesmo período. Originalmente, conta Elsaesser, o “cinema expressionista” foi criado para promover uma produtora de filmes e seu proprietário, a DECLA, do famoso produtor Erich Pommer. O cinema expressionista nasceu como um produto de exportação, e tinha mais afinidade com o que viria a ser chamado de “cinema de autor” do que com um cinema popular. Das várias histórias contadas sobre a gênese do Expressionismo no cinema, a mais arraigada é aquela que atribui seu florescimento ao ponto de vista aterrorizado de uma Alemanha que havia acabado de perder a Primeira Guerra Mundial. Elsaesser não afirma que essa história é inverídica, apenas sugere que deveriam ser considerados também outros elementos: a decadência no neorromantismo e na escola de arte decorativa Jugendstil, assim como o modernismo na Bauhaus e o construtivismo futurista (1). (imagem abaixo, A Mão)
A narrativa-moldura é
artifício relativamente
recorrente no cinema
expressionista alemão
artifício relativamente
recorrente no cinema
expressionista alemão
Outro elemento de contato entre Histórias Estranhas e filmes como Caligari e a Morte Cansada e O Gabinete das Figuras de Cera (Das Wachsfigurenkabinett, direção Paul Leni, 1924) é a utilização de uma narrativa-moldura. Logo no início da narrativa-moldura de Histórias Estranhas, notamos o que seria o “mal da prostituta”, ela se oferece tanto à Morte quanto ao Diabo, gerando uma disputa entre eles. Vale notar que, em Caligari, ainda que os dois amigos estejam interessados na mesma mulher, concordam que sua amizade não deve terminar quando ela se decidir. Os três personagens malditos foram protagonizados por três proeminentes figuras da época. O ator Conrad Veit, que todos conhecemos como o sonâmbulo assassino Cesare em Caligari, é a Morte. Reinhold Schünzel, ator e cineasta que atuou e dirigiu dezenas de papéis e filmes dramáticos e cômicos, é o Diabo – Schünzel atuou como vilão várias vezes. A atriz, escritora e dançarina Anita Berber atuou como a prostituta – como dançarina Berber é lembrada em Cocaína (1922), Morfina (1922?), entre outros; como atriz participou de vários filmes da época, como o famoso Dr. Mabuse, o Jogador (Dr. Mabuse der Spieler, direção Fritz Lang, 1922), atuaria novamente como prostituta num filme com fins educacionais sobre a prostituição, no qual Veit também atuou: Prostitution (direção Richard Oswald, 1919) (2). Como se vê, pelas personalidades que estrelaram o filme, é estranho que Histórias Estranhas tenha sido esquecido nas prateleiras do tempo.
Leia também:
Caligari e o Expressionismo Alemão: O Contexto de Um Cinema Alucinante
Antonioni e a Trilogia da Incomunicabilidade (I), (II), (III), (IV), (V)
Michelangelo Antonioni Entre o Rio e o Deserto
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Michelangelo Antonioni Entre o Rio e o Deserto
Notas:
1. ELSAESSER, Thomas. Weimar Cinema and After. Germany’s Historical Imaginary. New York: Routledge, 2000. Pp. 18-20.
2. BEIL, Ralf. “For me There is No Other Work of Art”. The Expressionist total Artwork – Utopia and Pratice. In: BEIL, Ralf; DILLMANN, Claudia (Eds.). The Total Artwork in Expressionism: art, literature, theater, dance and architecture, 1905-25. Ostfildern, Alemanha: Hatje Cantz Verlag, 2011. Catálogo de exposição. P. 39; NEUBRONNER, Suzanne. Short Glossary of Expressionism: Protagonists, Institutions, and Theatrical and Cinematic Works. In: BEIL, Ralf; DILLMANN, Claudia (Eds.). Op. Cit., p. 472.