“(...) Uma coisa parece
certa para mim: o cinema
em particular irá se tornar
mais e mais o domínio
da música ‘atonal’”
Harburger, “Ueber Filmmusik”,
Neue Muzikzeitung, 49, 1928 (1)
Afinal, Qual é a Música?
Ao assistir filmes mudos, quantas vezes nos perguntamos se aquela música que ouvimos é a mesma que tocava quando ele era apresentado nos cinemas. Antes do filme sonoro como era transmitida esta informação? Cada cinema decidia o que iria tocar? Os filmes eram acompanhados de partituras musicais? Consta que já em 1914 o cineasta norte-americano D. W. Griffith preparou indicações musicais para Judith of Bethulia, que deveriam ser reproduzidas pelos exibidores. Para O Nascimento de uma Nação (Birth of a Nation, 1914), Griffith se preocupou em criar uma identidade com as músicas da época da guerra civil americana. Entretanto, na maior parte dos casos, o acompanhamento musical na época era improvisado. E o caso desses novos arranjos musicais escritos por músicos atuais, o DVD deveria vir com as trilhas antigas caso não aprovemos as novas. Contudo, como saber se, pelo fato de serem antigas, as trilhas são originais? Posteriormente, alguns cineastas passaram a encomendar partituras orquestrais especialmente para seus filmes (2). No limite (insuportável), os filmes mudos deveriam ser vendidos como vieram ao mundo: silenciosos (sem trilha musical). A responsabilidade por sonorizar os filmes ficaria a cargo do ouvinte – o que poderia ser um enorme problema adicional. Qual seria a trilha sonora musical de um filme símbolo do Expressionismo alemão no cinema como O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, direção Robert Wiene, 1920)?
Joachim Fontaine nos revela alguns dados da história de Giuseppe Becce (1877-1973), um homem que viveu no tempo em que o cinema na Alemanha se transformara de uma atração de feira numa forma de arte (3). Prédios começavam a ser construídos especialmente para a projeção de filmes em telas grandes para platéias enormes, sem mencionar os longas-metragens que começaram a substituir as comédias pastelão de curta duração – alguns longas podiam chegar a quase três horas de duração, um padrão totalmente distinto daquele de quando pequenos rolos de filme eram apresentados em feiras. Os roteiros passaram cada vez mais a serem escritos considerando os padrões literários de peças teatrais consagradas. Atores e autores de teatro são incorporados ao sistema de produção da nova mídia – na Alemanha, durante muito tempo o cinema foi desdenhado pelas classes dominantes, que questionavam os padrões culturais daquela “atração de feira”. Desenvolvimentos tecnológicos combinado a novas estratégias de marketing criaram uma nova platéia de alta classe para os novos filmes.
As peças
musicais de Becce
acabaram com toda
a prática de coletâneas
aleatórias de música
de salão impostas
ao cinema (4)
O primeiro contato de Becce com o cinema foi em 1913, quando se comemorava o centenário do nascimento do compositor alemão Richard Wagner (1813-1883). Becce era compositor, maestro e possuía uma semelhança física com Wagner, o que levou o diretor de cinema Oscar Messter a convidá-lo para atuar como protagonista num filme sobre Wagner. Posteriormente Becce se tornaria chefe do departamento de música do estúdio alemão de cinema Decla-Bioscop AG e maestro principal de sua orquestra. Certo dia, Becce seria convidado para contribuir para a trilha sonora de Caligari, já que uma primeira partitura não havia feito sucesso – alguém selecionou músicas de acordo com o gosto estabelecido: passagens de Franz Schubert, Gioacchino Rossini, Vincenzo Bellini, Gaetano Donizetti e Paul Lincke. Apesar da fama de Becce e de seu orgulho em ter participado dessa empreitada, parece que a maior parte de suas partituras para o filme se perdeu. Estilisticamente, os trabalhos de Becce pertencem ao romantismo tardio. Embora os padrões da época também não tivessem sido descartados, os modelos para a melodia e a harmonia foram partituras expressionistas de Richard Strauss (1864-1949) ou mestres do Verismo italiano altamente dramático.
críticos para classificar
O Gabinete do Doutor Caligari
incluiria “Cubismo”, “Futurismo”, passando pelo “Impressionismo” o “Expressionismo”. A novidade na
época era tão grande que não
havia categorias estéticas
para classificá-lo (5)
O Gabinete do Doutor Caligari
incluiria “Cubismo”, “Futurismo”, passando pelo “Impressionismo” o “Expressionismo”. A novidade na
época era tão grande que não
havia categorias estéticas
para classificá-lo (5)
Transições fluidas foram substituídas por “montagens duras” e busca de efeitos de choques de extremos. Uma abordagem composicional que poderia facilmente ser relacionada com a técnica de montagem de Caligari. Para a estréia nos Estados Unidos em 1921, a cargo de organizadores não ligados a Becce, foram selecionadas peças de Richard Strauss, Claude Debussy, assim como os “ultramodernos” Igor Stravinsky (1882-1971) e Arnold Schoenberg (1874-1951) – a imprensa local citou também Leo Ornstein (1893-2002), Serguei Prokofiev (1891-1953), Modest Mussorgsky (1839-1881), Alexander Scriabin (1872-1915) e Erik Satie (1866-1925). De fato, a seleção de muitas peças musicais nunca ouvidas nos Estados Unidos sendo apresentadas na estréia de Caligari receberia tanta publicidade quanto as primeiras performances naquele país do Pierrot Lunaire de Schoenberg em 1923 e A Sagração da Primavera, de Stravinsky, em 1922. Juntamente com Fontaine podemos nos perguntar se a música da vanguarda fazia sentido no contexto de O Gabinete do Doutor Caligari, ou se a música de concerto tradicional faria um serviço melhor. A verdade é que, afirma Fontaine, a estréia de Caligari nos Estados Unidos se mantém como um marco na história de música para cinema (a trilha musical do vídeo abaixo é de Timothy Brock, 1996).
“A revista Musical America de 16 de abril 1921 devotou uma página inteira ao fenômeno num artigo intitulado ‘Comes Stravinsky to the Film Teather’, com o empresário Roxy Rothafel explicando em de talhe como a música ultramoderna do filme foi ‘calculada para reforçar o caráter exótico e aspectos fantásticos do filme ainda mais’. Para o personagem louco de Caligari, Rothafel e Rapée escolheram o tema do poema sinfônico de Richard Strauss Till Eulenspiegels Lustige Streiche, Opus 28 (1895) como fio condutor, enquanto para o sonâmbulo Cesare foi [poema sinfônico] de Debussy Prelude à l’aprés-midi d’un faune (1895). Não passou despercebido que a vanguarda de Stravinsky e Schoenberg, e também a música do ‘louco futurista’ Seguei Prokofiev e o ‘jovem selvagem’ Leo Ornstein, ‘o ‘alto apóstolo da nova arte na América’, estivessem tendo estréias glamorosas para grandes platéias durante a exibição de filmes. Rothafel usou a extravagância da música tanto para legitimar quanto para enobrecer o Expressionismo do filme: ‘Caligari é, em minha opinião, uma obra prima da imaginação e um triunfo [de] direção. Musicalmente não menos do que pictoricamente ele abre um país virgem. Há tão pouco tempo quanto cinco anos atrás, Stravinsky ou Schoenberg no cinema pertencia ao inconcebível. Hoje isso pode acontecer calmamente, e a platéia engolir calmamente a pílula” (6)
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Notas:
1. FONTAINE, Joachim. Caligari Meets Schoenberg. Music, Art, and Film as Total Artwork in Expressionism. In: BEIL, Ralf; DILLMANN, Claudia (Eds.). The Total Artwork in Expressionism: art, literature, theater, dance and architecture, 1905-25. Ostfildern, Alemanha: Hatje Cantz Verlag, 2011. Catálogo de exposição. P. 320n32.
2. MANZANO, Luiz Adelmo. Som-Imagem no Cinema: A Experiência Alemã de Fritz Lang. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2003. Pp. 30-1.
3. FONTAINE, J. , pp.316-20, 320n4.
4. Idem, p. 316.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
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Notas:
1. FONTAINE, Joachim. Caligari Meets Schoenberg. Music, Art, and Film as Total Artwork in Expressionism. In: BEIL, Ralf; DILLMANN, Claudia (Eds.). The Total Artwork in Expressionism: art, literature, theater, dance and architecture, 1905-25. Ostfildern, Alemanha: Hatje Cantz Verlag, 2011. Catálogo de exposição. P. 320n32.
2. MANZANO, Luiz Adelmo. Som-Imagem no Cinema: A Experiência Alemã de Fritz Lang. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2003. Pp. 30-1.
3. FONTAINE, J. , pp.316-20, 320n4.
4. Idem, p. 316.
5. Ibidem.
6. Ibidem.