“Não ousamos
subestimar as
estratégias formais
e visuais dos filmes
nazistas, mesmo no
caso de uma das
suas produções
mais inegavelmente propagandísticas”
Eric Rentschler (1)
Crescendo na Alemanha Nazista
Estimulado por um pai alcoólatra acostumado a atormentar uma esposa triste, o aprendiz de tipógrafo Heini Völker se junta a um grupo de jovens comunistas liderados por Stoppel. Durante um passeio de fim de semana, Heini logo se desencanta com seus companheiros rebeldes e abandona aquela orgia sexual e alcoólica. Escondendo-se na floresta, ele espiona um grupo da Juventude Hitlerista e assiste fascinado à cerimônia noturna deles - um interesse que não diminui mesmo depois de ser descoberto e mandado embora. Heini retorna a Berlim exultante sobre a disciplina e a ordem da Juventude Hitlerista e cantando o hino deles para sua mãe, o que leva seu pai a brigar e bater nele. Apesar disso, o garoto resolve procurar pelos jovens nazistas Fritz e Ulla. Heini se recusou a participar de um ataque comunista ao dormitório da juventude Hitlerista, mas só conseguiu conquistar a confiança dos nazistas quando denunciou o plano do bando comunista de explodir o novo albergue. (imagem acima, é assim que começa o filme, com o close de uma maça e a câmera vai se afastando. Então descobrimos que dois garotos pretendem roubar algumas. São apanhados e uma discussão acontece entre a multidão. Wilde, o comunista de plantão, fala sobre a fome e lembra à platéia que os tapas na cara que os meninos levaram do quitandeiro eram também um tapa na cara de todos eles; imagem abaixo, à direita, todos fogem antes da chegada da polícia)
Confrontada por um enfurecido Stoppel e seu grupo em função da atitude do filho, a mãe não sabe como protegê-lo. Desesperada, ela decide tirar a própria vida e a do filho ligando o gás num momento em que Heini estava. A mãe morre, mas Heini acorda no hospital rodeado por um grupo da Juventude Hitlerista. Em gratidão eles lhe presenteiam com um uniforme como o deles e um espelho. Com a morte da mãe e concordância do pai ao apelo de um líder de grupo da Juventude Hitlerista, Heini se muda para um dormitório nazista. Heini trabalha a noite toda para imprimir os panfletos de uma eleição que se aproxima, insistindo em distribuí-los em seu antigo bairro, Beuselkitz. Membros do bando de Stoppel, liderados pelo perverso Wilde, ficam sabendo da presença de Heini e o perseguem pelas ruas. O grupo encontra o garoto numa feira deserta, onde Wilde esfaqueia Heini com a mesma faca uma vez cobiçada por ele. Quando seus amigos nazistas chegam, é tarde demais. Com seu último fôlego, Heini estende o braço para cima e recita as primeiras palavras da Canção da Juventude: “Nossa bandeira tremula diante de nós, ela leva...”. Surge uma bandeira do Partido Nazista e, sobre ela, homens marcham acompanhados pela música marcial. “A bandeira [significa] mais do que a morte” (“Die Fahne ist mehr als der Tod”), é a frase final (no vídeo no final do texto a frase foi traduzida ligeiramente diferente para o espanhol).
Cinema e Engenharia Emocional
Mocidade Heróica (Hitler Youth Quex: Ein Film vom Opfergeist der deutschen Jugend, direção Hans Steinhoff, 1933) foi o primeiro filme com substancial apoio do Partido Nacional Socialista de Adolf Hitler – que subiria ao poder naquele ano. Simpatizante do nazismo, com o sucesso do filme Steinhoff se tornaria figura importante na produção de peças cinematográficas para a Juventude Hitlerista, como A Marcha Para o Führer (Der Marsch zum Führer, 1939) (2). Mocidade Heróica foi produzido sob os auspícios de Baldur von Schirach, líder da Juventude Hitlerista. Nas palavras de Eric Rentschler, o filme santifica um feito heróico adolescente, remodelando o corpo morto do garoto e fazendo dele um ícone. Ao tornar-se Ministro da Propaganda de Hitler em 1933, Josef Goebbels reconheceu o potencial do cinema como instrumento político. Parafraseando Goebbels, Rentschler afirma que as idéias políticas devem assumir “formas estéticas”... Quer dizer, nada de paradas militares e espetáculos de bandeiras, emblemas e tropas. Mas isso não quer dizer que Goebbels acreditava na “arte pele arte”. Muito pelo contrário, achava poderia “livrar” o cinema disso, assim como do liberalismo intelectual e do comercialismo libertino. Seu ataque ao cinema alemão da República de Weimar (aquela de F.W. Murnau e Fritz Lang, entre outros) era uma extensão da campanha contra a “arte degenerada”. Mera lealdade ao Partido, Goebbels advertiu, não é garantia de sucesso. A autêntica arte cinematográfica deve transcender o cotidiano e “intensificar a vida” (3).
Essa lógica mórbida de manipulação das massas
foi banida da indústria do cinema e da televisão?
Na opinião de Rentschler, intensificar a vida é o que fez Mocidade Heróica. O filme parte de um sujeito humano e o transforma na propriedade de um partido político. A mídia de massa reconfigurando um destino real. Herbert Norkus, membro da Juventude Hitlerista no bairro de classe operária de Beuselkietz, em Berlim, morreu nas mãos de assaltantes comunistas enquanto distribuía panfletos durante as eleições de janeiro de 1932. Rapidamente transformado num mártir, Norkus tornou-se o tema de editoriais apaixonados e mensagens públicas inspiradas. Eventos comemorativos em sua honra ocasionaram elaboradas marchas e comemorações por toda a Alemanha. Sua morte recebia uma benção anual em 24 de janeiro, uma data de ritual durante o Terceiro Reich pelos integrantes da Juventude Hitlerista caídos. Karl Aloys Schenzinger imortalizou Norkus em Der Hitlerjunge Quex, um romance escrito entre maio e setembro de 1932 e pré-publicado em capítulos no Völkicher Beobachter, o jornal do Partido Nazista – sendo lançado em dezembro, posteriormente Schenzinger trabalharia também no roteiro do filme. O livro se tornou leitura obrigatória da juventude alemã (4). (imagem acima, à esquerda, Heini e sua mãe; acima, à direita, ela é agredida pelo marido porque ele não encontra dinheiro. Heini, que acabara de ganhar uma gorjeta no trabalho, coloca na mão dela sem o pai perceber. Ela estende a mão e dá para o pai. Heini salvou a mãe de levar uma surra; abaixo, à esquerda, Heini estava cantando a música da Juventude Hitlerista para a mãe, o pai escuta e, dando vários tapas na cara dele, obriga o menino a cantar a Internacional Comunista)
Minha Luta Pela Mocidade
Hitler, “dono” da
Alemanha durante
alguns anos, foi um “pai
da pátria” diferente. Ele queria construir um país
aonde haveria filhos
sem experiência da
figura paterna
Não é difícil imaginar Adolf Hitler assumindo o posto de pai dos alemães, especialmente se você nasceu num país onde o “pai da pátria” e/ou “salvador da pátria” é uma figura recorrente na política. Entretanto, para o historiador do cinema Thomas Elsaesser, Hitler não apenas não era um Pai, como tratou de destruir a figura paterna – e a materna também. “Sua” Juventude Hitlerista foi, antes de qualquer coisa, uma maneira de produzir uma sociedade capaz de se reproduzir sem pais. Em 1943, o antropólogo Gregory Bateson realizou uma análise de Mocidade Heróica. Ele explica que no primeiro capítulo de Minha Luta (Mein Kampf), a autobiografia de Hitler, o chanceler alemão mostra como venceu a luta contra seu pai e se tornou um Líder da Juventude, ao invés de um burocrata responsável e pai de uma família – supondo, é claro, que se possa dar alguma credibilidade ao livro. Para que Heini fizesse parte da Juventude Comunista Internacional, Stoppel pediu uma autorização por escrito do pai. Posteriormente, o pai simplesmente entregaria Heini para os nazistas. Numa conversa com Heini, o pai fala da situação ruim do país e do desemprego, insiste que os jovens devem ajudar os mais velhos. A Juventude Hitlerista, ao contrário, incentivava o desprezo por tudo que era velho – exceto, é claro, Hitler e todos os adultos que comandavam a Alemanha.
Bateson ressaltou que se almejamos descobrir como Hitler constrói um nazista fanático temos que atentar para a maneira como a propaganda nazista representava a família alemã – como fizeram para que a Juventude fosse infinitamente desejável, e que espécie de amor eles tinham como modelo quando partiram para construir uma população de garotos apaixonados pela morte. A análise de Bateson parte desta questão: Como o amor e ódio no interior de uma família alemã genérica são invocados e rearranjados pelos propagandistas para fazer as pessoas apoiarem o nazismo? A caracterização das ações do pai de Heini (o Pai Alemão) mistura dependência infantil e violência dominadora (em relação à esposa). A atitude de Heini em relação à mae é o oposto da do pai. O filho é o herói que se sacrifica para salvar a mãe da violência do pai – como na cena do pai quebrando os móveis em busca do dinheiro que acredita que a esposa não pretende dar para ele. Heini chega e coloca uma moeda na mão dela discretamente, dinheiro que havia acabado de ganhar com seu trabalho de aprendiz na tipografia. Na opinião de Bateson, os propagandistas pretendiam que a platéia transferisse a atitude de Heini para o Nacional Socialismo. (acima, à direita, Heini está no hospital, ele sobreviveu ao envenenamento por gás. Sua mãe está morta e, durante uma visita ao menino, seu pai e o nazista Kass se encontram. Kass demonstra certo interesse pedófilo por meninos e depois faz considerações políticas contra os comunistas ao se referir à "nossa Alemanha". Já que não tem como sustentar o filho, o pai acaba permitindo que Heini se mude para o dormitório da Juventude Hitlerista)
Josef Goebbels, o Ministro
da Propaganda de Hitler, detestava todos os filmes
com um conteúdo político explícito. Ele apostava nos filmes de entretenimento
Mas o filme também tem de mostrar que o amor da mãe por Heini não pode ser completo porque ela é a esposa do pai e deve ser leal a ele. Assim, o filme deve fazer o nazismo receber o auto-sacrifício de Heini. O menino é levado a contrastar nazismo e comunismo. A cena da estação ferroviária mostra os jovens nazistas uniformizados, disciplinados e felizes, enquanto os jovens comunistas (grupo do qual Heini ainda faz parte por insistência do pai) são irônicos e mal arrumados. Quando Heini volta da floresta, conta para a mãe como o acampamento da Juventude Hitlerista o impressionou e começa a cantar a música deles (originalmente ele havia ido para a floresta com o grupo de comunistas, mas afastou-se devido ao clima de bordel). O pai escuta, briga e bate no menino, obrigando-o a cantar a música da Internacional Comunista. É preciso esclarecer que naquela época de crise econômica e caos institucional havia um vácuo de poder na Alemanha. Além do mais, o discurso comunista era bastante convincente numa sociedade onde muitos milhões não tinham nada e alguns poucos industriais, banqueiros e aristocratas tinham tudo e compravam todo mundo. Segundo Bateson, o comportamento do pai empurra a platéia para longe do comunismo (e do pai) e na direção do nazismo. (acima, à equerda, a mãe de Heini)
Vale lembrar que nos últimos dias da guerra Hitler tentou um acordo com as potências aliadas para lutarem juntos contra os soviéticos. A própria análise de Bateson deve ser avaliada com cuidado, já que foi realizada nos Estados Unidos durante uma época em que esse governo (e Hollywood) se esforçava por colocar a opinião pública a favor dos soviéticos. É digna de nota a máquina de propaganda norte-americana: Missão em Moscou (Mission to Moscow, direção de Michael Curtiz, 1943), enaltecia Stalin e demonizava Trostski. O objetivo principal era neutralizar as reservas da opinião pública norte-americana em relação a um país que havia feito uma revolução comunista combatida pelo próprio Congresso norte-americano. Portanto, propaganda por propaganda, tudo parece ser “quem manda”! (Partidos Políticos, governos, fábricas de cereja, etc, etc, etc.). Durante a guerra os soldados soviéticos eram chamados de patriotas, assim que ela termina passaram a ser retratados como nazistas. Em suma, Missão em Moscou é um filme norte-americano de propaganda, tão grosseiro quanto Os Carrascos Também Morrem (Hangmen Also Die, direção do imigrante alemão Fritz Lang, com roteiro de um tal de Bertold Brecht, 1943). Era com filmes grosseiros assim que o governo norte-americano queria fazer seu público acreditar que os nazistas só seriam capazes de produzir peças de propaganda esdrúxulas.
O Que é Um Rebelde Hoje?
“O Estado Nacional
Socialista definitiva e deliberadamente faz do
cinema um transmissor
de sua ideologia”
Mocidade Heróica gira em torno de um drama familiar, tendo como pano de fundo a crise econômica e política do final da República de Weimar. A mesma receita de outros dois filmes empenhados em fabricar mártires nazistas, SA-Mann Brand (também conhecido como Storm Trooper Brand;S.A.-Mann Brand - Ein Lebensbild aus unseren Tagen, direção Franz Seitz, 1933) e Hans Westmar (Direção Franz Wenzler, 1933). Heini Völker encarnou Herbert Norkus, “Völker” é um servo do Povo (Volk), o herói que responde ao chamado de uma missão histórica. Um dado que a imprensa da época ressaltou é que Heini se assemelha ao fervor da juventude alemã que tombou no início da I Guerra Mundial. De forma a aumentar o impacto ficcional de Mocidade Heróica, foi suprimido o nome do integrante da Juventude Hitlerista de atuou como Heini. Assim procedendo, explica Rentschler, tanto na narrativa quanto na vida (do ator), o filme despersonaliza o protagonista em prol de uma causa maior. Rentschler ressalta em alguns aspectos a semelhança entre Mocidade Heróica e os roteiros expressionistas das peças de Wandlungsdramen (dramas de conversão) de Ernst Toller, Georg Kaiser e Ernst Barlach, onde filhos irados se rebelam contra a tradição, confrontando e até assassinando seus pais, abandonando a família burguesa em busca de laços comunais mais gratificantes. (imagem acima, à esquerda, Wilde e Stoppel está na barraca de tiro ao alvo mirando em bonecos nazistas quando Wilde diz que está atirando em Heini. O menino caiu em desgraça com os comunistas quando avisou os nazistas de um plano para explodir um local da Juventude Hitlerista; abaixo, à direita, Stoppel segue Heini e lhe faz ameaças)
Mocidade Heróica coloca um herói em movimento habitando sua pessoa, dissolvendo sua família e seqüestrando sua vida. Heini se torna parte de um todo maior e, assim, será toda a sua existência como uma parte. Ele funciona como um modelo para seus camaradas, para os muitos jovens alemães que assistiram ao filme. O cinema assumiria um papel chave no interior das instituições da disciplina, surgindo como uma forma de educação, treino militar e recreação. Discursando para professores em 1934, o nazista Bernhard Rust, o Ministro da Educação, afirmou que o cinema pode auxiliar os alunos a compreender a história da Alemanha e seus problemas: “O Estado Nacional Socialista definitiva e deliberadamente faz do cinema um transmissor de sua ideologia”. O Partido promoveu, nas palavras de Rentschler, uma institucionalização da revolta edipiana ao direcionar os jovens contra a casa dos pais, a Igreja, a escola e outros modelos tidos como ultrapassados. Em suas organizações para a juventude, o Partido Nazista assumiu uma função central na rebelião dos filhos contra os pais (5).
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Notas:
1. RENTSCHLER, Eric. The Ministry of Illusion. Nazi Cinema and it’s Afterlife. Massachusetts: Harvard University Press, 1996. P. 66.
2. Idem, p. 324n43.
3. Ibidem, pp. 53-4 e 320n8.
4. Ibidem, p. 55.
5. Ibidem, pp. 57-8, e 322n21 e 27.