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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

17 de jun. de 2010

Buñuel, o Blasfemador (II)



“Não  me 
interessam
os  
personagens   sem
aspectos contraditórios,
porque  então  sabemos
tudo  sobre  eles  desde
o pr
imeiro momento”

Luis Buñuel (1)




A Igreja, a Censura e o Surrealismo

Em Viridiana uma mulher vive absorvida em sua fé, almeja noivar com Cristo, mas acaba por se render aos desejos sexuais. O ponto alto é a seqüência em que mendigos invadem a casa onde mora e fazem um banquete e uma orgia. Viridiana acreditava que através de orações e trabalho eles seguiriam o caminho do Bem. A referência católica fica por contada recriação da Última Ceia, só que com os mendigos (imagem abaixo, à direita). Georges Sadoul sugere que Viridiana é “um pouco” a seqüência de Nazarin (2). Buñuel disse que a censura, paradoxalmente, até o ajudou na cena final. Originalmente, Viridiana batia na porta do quarto do primo e o encontrava com a empregada. A servente saía e ela tomava seu lugar. A censura achou escandaloso um homem com duas mulheres. Buñuel substituiu por um jogo de cartas a três. “E agora”, confessou Buñuel, “eu estou quase envergonhado de meu primeiro final: era muito grosseiro, muito direto” (3). (imagem acima, Cristo rindo com ironia para/de Ándara, Nazarin, 1958)



A  pose  do  banquete
dos mendigos  não é para
a  câmera  de  Buñuel, mas
para a mendiga
, que tira a
foto levantando a saia
(4)





L’Observatore Romano
, jornal do Vaticano, reagiu mal quando Viridiana ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes: “Pela primeira vez talvez na história dos festivais internacionais, além das habituais exibições de impudor, verificou-se uma seqüência de representações blasfematórias”. O jornal se referia a Madre Joana dos Anjos (Matka Joanna od Aniolów, direção Jerzy Kawalerowicz, 1961) e Viridiana. O governo espanhol do ditador General Francisco Franco, apressou-se em censurar os jornais. Não deveriam mencionar o filme e nem mesmo o nome de Buñuel. Franco também demitiu o diretor-geral da Cinematografia espanhola por ter subido ao palco, em Cannes, a fim de receber o prêmio (5). Por força de acordos políticos entre os governos espanhol e francês, quase que se conseguiu banir o filme também da França (6). (abaixo, à esquerda, Dom Jaime veste as roupas da esposa defunta)





“[Buñuel]    salvou    Nazarin
 ao     introduzir     a     dúvida
em     seu     espírito
   salvará
Viridiana jogando-a na vida”

Ado Kyrou (7)




Buñuel contou que Franco talvez tenha assistido ao filme e não achou nada demais. De fato, observou Buñuel, depois do que aconteceu durante a guerra civil espanhola, a favor ou contra a Igreja, o filme devia parecer muito inocente. Viridiana estreou na Itália em Roma, mas em Milão foi proibido e a Justiça determinou que Buñuel fosse preso por um ano caso entrasse no país. O cineasta italiano Vittorio De Sica saiu horrorizado e oprimido do cinema após assistir Viridiana. De Sica chegou a perguntar à esposa de Buñuel se ele era de fato monstruoso e costumava espancá-la. Adotando outro tom, Françoise Giroud definiu Viridiana como um filme terrível, “(...) que se deve guardar com cuidado. A ver e rever, mas não com uma companhia qualquer. Seria arriscar-se, na saída, a ficar petrificado e mudo, só para não confrontar a Viridiana da gente com a da outra pessoa”. Na mesma época, em Paris, desabafou Buñuel, não gostou de um cartaz onde era chamado de “o diretor mais cruel do mundo” (8). (abaixo, à direita, de todas as maneiras possíveis, o diabo tenta Simão repetidamente, em Simão do Deserto, 1965)

“Quando estudava
com  os  jesuítas,  os
padres reprimiam nossos instintos   sexuais   e   toda
nossa energia era empregada
 
no fervor religioso... à noite, 
silenciosamente,   nos masturbávamos diante
das   imagens   da
Virgem Maria
...

Luis Buñuel confessou

a Glauber Rocha (9)

De acordo com Frédéric Grange, em Viridiana Buñuel explicitou o papel da burguesia na degradação dos valores cristãos. A aristocracia rural espanhola, impotente para garantir seu futuro, se articula em torno de valores cristãos para reafirmar seu poder. A beata representaria o poder cristão da Igreja, e não o mito cristão – representado por Nazarin (10). Grange afirma que Viridiana encena a passagem do poder, da aristocracia para a burguesia – na figura do empreendedorismo do filho de Dom Jaime. Devido à degradação de seus valores ao longo dos séculos, a Igreja também se rearticula com o poder. A aristocracia é representada pelo conservador Dom Jaime. Ele deseja Viridiana, desejo reprimido que acaba mal. Sua esposa morreu no dia do casamento, ele quer reviver este momento e pede a Viridiana para colocar o vestido da noiva – ela é idêntica à morta. Narcotiza a beata, mas não consegue possuí-la. Ele se enforcou com a corda de pular da filha da empregada, a única que conservou sua inocência.

Buñuel mina
as bases dessa sociedade
mu
ito santa e muito burguesa
que
oprime a todos.  Destrói o
dualismo entre o Bem e o Mal
num filme onde o ateísmo
pode  ser  percebido
claramente

Opinião de Ado Kyrou a respeito de Nazarin (11)

Viridiana, a beata, por sua vez, faz parte dessa classe social que perde a hegemonia e morre com Dom Jaime. Ela procura voltar a um cristianismo militante num mundo em progressiva dessacralização. Entretanto, suas atitudes estão em desacordo com a marcha da História. Em comparação a Nazarin, o fracasso de Viridiana representa também o aniquilamento dos valores que ela professa. Enquanto Nazarin agia basicamente num sentido a-histórico, Viridiana queria se integrar à História para não ser excluída do progresso. Para tanto, ela procura se reintegrar ao mundo secular. Viridiana quer participar da História, introduzindo nela os ensinamentos cristãos. Mas os ensinamentos se viram contra ela. Enquanto prega a castidade, será estuprada por aqueles a quem escolhera como objeto da caridade (12). (imagem acima, à esquerda, Nazarin é repreendido por um superior da Igreja católica; atrás dele, na parede, um quadro com a imagem de um militar do governo... ou mártir militar da nação! Fica evidente a relação entre a Igreja e o Poder)


“’Para   mim,   diz
Buñuel,   ‘Viridiana   é
mais virgem depois que
dorme com Jorge
...’”

Buñuel dá a Glauber Rocha sua
opinião sobre a cena final de
Viridiana, entre a ex-beata e o
sobrinho de Dom Jaime (13)



Mesmo que Buñuel sugira que os fanáticos viviam enxergando “chifre em cabeça de cavalo” nos seus filmes, o que dizer da cena de Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, em co-direção com o pintor Salvador Dalí, 1929) onde um homem puxa um piano na direção de uma mulher. Juan-Luis Buñuel, filho do cineasta, disse que as interpretações sobre o filme eram as mais variadas. Por exemplo, os jumentos mortos sobre o piano simbolizariam a Morte. Os dois padres amarrados ao piano simbolizam a religião detendo o homem. O piano representaria seu coração impedindo o homem de alcançar seu objeto do desejo, a mulher. Matthew Gale sugere que esse significado seria bastante evidente e óbvio na cena. A propósito, Gale nos conta que próprio Salvador Dalí atou como um dos padres (última imagem do artigo) (14). Entretanto, esclarece Juan-Luis aos que não estão familiarizados com o método surrealista empregado por Buñuel e Dalí, e talvez possamos incluir Gale neste grupo, que a idéia é justamente não permitir qualquer interpretação simbólica. Era um sonho irracional, disse. (imagem acima, à direita, cardeal atirado pela janela em A Idade do Ouro, 1930)

De acordo com Gale, A Idade do Ouro articula política e religião de forma muito mais explícita do que Um Cão Andaluz. A cerimônia de fundação de Roma (“...A antiga amante do mundo pagão à séculos tornou-se a sede secular da Igreja...”) seria uma paródia do fascismo italiano nascente. As pretensões de Mussolini são satirizadas pela procissão e o discurso de fundação, pelos bispos sentados numa região que talvez o público da época reconhecesse (infestada de bandidos), e finalmente pela imagem dos esqueletos dos bispos com suas mitras (palavra que ao mesmo tempo designa o ornamento que autoridades eclesiásticas usam na cabeça e a carapuça de papel colocada nos condenados pela Inquisição). Mesmo o estranho casal protagonista foi tomado na época por uma caricatura do casal Real da Itália. Num contexto mais amplo, essa referência englobaria a reconciliação entre o Vaticano e o Reino da Itália, articulada por Benito Mussolini através dos Pactos Lateranos, em 1929 (em troca do fim da hostilidade papal, a Itália reconhece e reafirma a religião Católica Apostólica Romana como a única religião de Estado). O público francês da época também poderia ter reconhecido a seqüência como um aviso sobre o aumento do conservadorismo em seu próprio país (15).






“(...)  A  moral  burguesa  é  para  mim
o  imoral,  contra  o  qual  se  deve  lutar:
a   moral   fundada   sobre   nossas   injustas

instituições sociais, como a religião, a pátria,
a   família,   a   cultura;   enfim,   isto   que
se chama os ‘pilares da sociedade’ (...)”
 

Luis Buñuel (16)




O caráter blasfemo de Salvador Dalí pode explicar a identificação com Buñuel. O pai de Dalí desaprovou a união do filho com Gala. Ela era uma mãe casada, sexualmente liberada e uma estrangeira. O pai do pintor, arrotando seu poder, chegou a pressionar para que a polícia expulsasse o filho da cidade. Um acontecimento que encontraria eco na prisão do protagonista de A Idade do Ouro e a dificuldade de reunião do casal. Mas houve ainda outra manifestação dos sentimentos do pintor em relação à atitude do pai. Numa folha de papel onde uma linha desenha o vulto de Jesus, tendo no centro um coração encimado por uma cruz, Dalí escreveu: “Às vezes eu cuspo com prazer no retrato de minha mãe” (17). (imagem acima, à esquerda, um ostensório é posto no chão e mostrado na altura dos pés em A Idade do Ouro; abaixo, à direita, Severine e a mistura entre morte e sexo na cabeça de um cliente, A Bela da Tarde, Belle de Jour, 1967)



Em A Bela da Tarde,

após   a   missa   Severine    está
num   caixão,   finge   de   morta  e  um
duque a chama de filha –  depois ele se masturba. Ao cortar a missa, reclamou   Buñuel,   a   censura mudou

o  clima  da  cena (18)



A conclusão de A Idade do Ouro apresenta a controversa cena do Duque de Blagis, vestido de Jesus Cristo, deixando o castelo onde seviciou e torturou escravas sexuais. Mais sacrílega e blasfema é a seqüência final, quando volta para recolher do chão uma das escravas que conseguiu chegar até o portão. O duque/Cristo entra com ela e fecha a porta. Alguns momentos depois sai sozinho e segue com os outros três nobres que participaram das orgias e o esperavam do lado de fora. Na imagem seguinte, a última do filme, uma cruz onde estão pendurados cinco escalpos (19). Esta seqüência final foi baseada no livro do Marques De Sade (Os Cento e Vinte Dias de Sodoma, 1785). Uma pequena seqüência, que o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini transformará num longa-metragem, Salò, ou os 120 Dias de Sodoma (Salò, o le 120 Giornate di Sodoma, 1975). No filme de Pasolini, se não existe alguém vestido como Cristo, podemos presenciar o escapelamento que em A Idade do Ouro fica apenas sugerido pelo grito de mulher depois da porta se fechar e os escalpos pendurados na cruz. (imagem abaixo)


O texto sadiano,
adaptado ao cinema de
Buñuel e Pasolini, traduzia as
relaç
ões de poder na Espanha e na Itália como se o original tivesse sido escrito
no século 20




Só para lembrar, antes dessa seqüência, acompanhamos outra em que um bispo é atirado da janela de um segundo andar. Nas duas seqüências, ouvimos tambores que provavelmente são os mesmos de Calanda, a cidade natal de Buñuel. Um lugar que, segundo sua própria descrição, viveu na Idade Média até o começo da Primeira Guerra Mundial. Referindo-se à Espanha, o filho de Buñuel ressaltou que muitas partes daquele país só saíram da Idade Média a partir dos anos 70 do século passado. Apesar do caráter irracional do método surrealista empregado por Buñuel e Dalí, quando considerada à luz dos acontecimentos contemporâneos ao filme, a tese de Gale sobre o caráter mais político de A Idade do Ouro faria sentido. Talvez por esse motivo, o cinema de Paris que projetou a primeira apresentação do filme foi invadido e depredado por membros da direita francesa – mas a platéia conseguiu voltar e assistir até o final.

 “Para Buñuel, os verdadeiros monstros,
aqueles nos quais cuspimos
, são os homens
e mulheres incapazes de amar exageradamente
,
de se enganar exageradamente
, de se
revoltar exageradamente
(...) (20)

O casal separado desde o começo do filme é marcado por um amor louco cujo obstáculo todos conhecem: a Igreja e o Estado, a lei e a ordem, a tradição e a família... O homem, ao ser abandonado se entrega à destruição do quarto da mulher. Atira tudo que pode pela janela. Um dos pontos que teria determinado protestos da Liga Anti-Judia e da Liga dos Patriotas foi a justaposição de um pé de mulher e de um ostensório (objeto do culto católico, onde se deposita a hóstia sagrada) (21) - o fetiche em relação aos pés figura entre as muitas obsessões de Buñuel. A Idade do Ouro foi banido depois de apenas seis dias. Juan-Luis ressaltou que, na França, o filme esteve censurado de 1930 a 1980. “Como se vê, ironiza o filho de Buñuel, “a França é um país livre” (22). (ao lado o Vaticano, a essa altura já tendo entrado em acordo com Mussolini, A Idade do Ouro; abaixo, à esquerda, Dom Jaime convence Viridiana a colocar o vestido de casamento da esposa dele, falecida nas núpcias. Café com sonífero a faz adormecer e ele tenta fazer sexo; não consegue mas diz para ela que fez. Ela vai embora, ele se suicida)

Os Imbecis, o Público e o Picaresco 
 


(...) Nunca tive
a intenção de escrever
um roteiro de tese [para Virid
iana], demonstrando,
por exemplo
, que a caridade cristã é inútil e ineficaz.
São os imbecis que
pretendem isso”


Luis Buñuel (23)




Buñuel disse que, “segundo os jornais”, o que provocou maior escândalo em Viridiana foi a Aleluia, de Haendel durante a orgia dos mendigos; o Réquiem, de Mozart, quando Dom Jaime toma Viridiana nos braços (sem atentar contra seu pudor); a coroa de espinhos jogada ao fogo e o crucifixo-punhal. De acordo com o cineasta, um jornalista teria escrito que, “em Viridiana, Buñuel puxou seu crucifixo como se fosse um punhal”. Ora, desabafou o cineasta, o crucifixo-canivete era um objeto encontrado por toda a Espanha, nas lojas de produtos baratos. Talvez, sugeriu procurando uma resposta, por conta do que Jean Epstein chamou fotogenia, a significação desse objeto banal assumiu repentinamente um tom blasfematório e sacrílego. Quanto à coroa jogada ao fogo, Buñuel esclareceu que a liturgia ortodoxa determina que vestes sacerdotais ou objetos consagrados sejam queimados quando estiverem fora de uso – não deve ser jogado no lixo. Eu compreenderia, disse Buñuel, se protestassem caso Viridiana escarrasse sobre a coroa!



“[O   mendigo   cego]

é hipócrita,  perverso   e
re
pugnante    em    todos
os  sentidos
.  Foi  ele  que
assumiu o lugar de Cristo
[na  cena  do  banquete]”


Ado Kyrou (24)





Ainda reclamando das interpretações dos “imbecis”, Buñuel insistiu em afirmar a pureza de Viridiana. Insistiu também que Dom Jaime não é um sádico libertino, mas corajoso e idealista - alguém que se pune terrivelmente sem haver feito nenhum grande mal ao tentar reproduzir seu casamento, que não chegou a se consumar. Quanto aos mendigos, continuou Buñuel, “(...) não sou responsável. Eles são assim, já há séculos (...)”. De acordo com David Robinson, dentre todos os mendigos Buñuel admira apenas aquele que, insolente e orgulhoso, recusou a piedade de Viridiana e foi embora - sem antes deixar de pedir uma esmola. Mas o filme não conseguiria, ainda de acordo com Robinson, esconder o preconceito de Buñuel contra os cegos. Um dos mendigos, o cego, é mau. Para Buñuel, todos os cegos são maus! (25) Buñuel, explica Robinson, não gosta dos cegos porque eles estão presos por associações falsas e sentimentais. Em A Idade do Ouro, um cego é atingido violentamente com um pontapé na barriga (26) (imagem acima). Na verdade, tudo isso seria apenas um exemplo do que Carlos Rebolledo acredita sejam elementos do romance picaresco espanhol dos séculos XVI e XVII na obra de Buñuel (27).


Um dos mendigos se
recusará a ser escravo
do
s “complexos de bondade
da beata Viridiana
. Ado Kyrou
sugeriu    que    personagens
sublimes assim só podem ser são encontrados apenas na
obra de Buñuel
(28)



De acordo com Rebolledo, nem tudo em Buñuel é critica a religião. Como o comportamento de Dom Jaime em relação à Viridiana, que seria motivado por uma impotência enquanto filho de uma mãe que ele queria intocável e purificada. A sociedade espanhola, em suas bases matriarcais, impossibilitava a liberação da dependência em relação à mãe – uma castração fundamental. A projeção desse culto nas relações sexuais faria nascerem conflitos profundos, levando à esterilidade, à morte, ao suicídio, ao homicídio sádico. É por esta razão, explica Rebolledo, que nos romances picarescos a descrição da infância adquire muita importância (29). Além disso, o elemento picaresco descristianiza as figuras do cego e dos doentes. Não existe o sofrimento humano como espelho daquele de Cristo. A caridade também é posta em xeque, o picaresco faz do caridoso um monstro fonte de calamidade. Encontramos este tipo de personagem em Os Esquecidos (Los Olvidados, 1950), além de A Idade do Ouro e Viridiana – poderíamos incluir Nazarin na lista de Rebolledo. (imagem acima, à esquerda, a cena do famoso crucifixo-canivete em Viridiana; abaixo, no mesmo filme, Dom Jaime se enforca depois de mentir para Viridiana que a violentou enquanto ela dormia pelo efeito de drogas, no detalhe, o elemento fálico presente na alça da corda de pular com a qual se matou)

Viridiana   não   ordenhou
a  vaca -  a  teta  parecia  um
pênis
.   Quando   o   mendigo
tenta  estuprá-la
,  ela  toca  na
alça da corda de pular que ele
usa como cinto
e acha que  é  o
pênis dele
.  Já  havíamos  visto
as alças quando Dom Jaime se
enforcou - era a mesma
corda com a qual havia presenteado
a   filha   da   empregada


Obcecada pela caridade que não pode mais praticar como reclusa, Viridiana transforma os mendigos que acolhe em objetos de culto – eles substituem a presença de Cristo. Buñuel revela aqui a origem do sentimento cristão da fé. Entretanto, quando são transformados em Cristo e seus apóstolos (a cena do banquete), eles são destituídos de sua materialidade. Viridiana constrói mártires e torna-se vítima deles. A Santa Ceia transfigurada no banquete dos mendigos transforma-se em orgia. “O tema tradicional dos cegos, dos aleijados e dos monstros passa, portanto, diretamente do universo picaresco para a obra buñueliana. Nos dois casos, eles encarnam a recusa de uma moral tradicional, tornada inoperante” (30).


Existe uma literatura
e um cinema apenas para
esculachar a burguesia, por que
não   haveria   outro   para esculachar os pobres?





Entretanto, de acordo com Matthew Gale, em alguns casos seria reducionismo apelar para a nacionalidade de Buñuel e Dalí. Na cena de Um Cão Andaluz onde o homem tenta de todas as formas ser aceito pela mulher (a seqüência do piano com jumento morto e padres), as referências ao amor romântico seriam destruídas por um caráter cômico. Essa tendência de atacar estereótipos, Gale sustenta, teria sido buscada também nos filmes de Hollywood que Buñuel e Dalí admiravam (31). Não seria diferente em relação ao amor de Viridiana por Cristo – cômico ou não. O ataque aos estereótipos deveria agradar a Buñuel na medida em que, mesmo em suas origens cristãs, esse amor não passa de (ou acabara por se converter em) formas hipócritas e covardes de chantagear a si mesmo (a) e aos outros (as). (imagens acima e abaixo, Simão pregando para suas ovelhas do alto de sua torre no deserto, Simão do Deserto; última imagem do artigo, cena de Um Cão Andaluz, Dalí é o padre à direita)


Aquele mendigo
leproso é o personagem
mais solitário de Buñuel
. As penas da pomba que comeu,
e que irá espalhar durante o banquete dos mendigos
, são símbolo freudiano de masturbação (32)




Buñuel explicou que o leproso não era ator profissional, mas um mendigo que o havia abordado na rua, em Madri. Quando surge na tela, apanha uma pomba, acaricia-a, e depois supostamente (Buñuel não mostra) a come. “Se ele fez isso, disse Buñuel, não é porque ele fosse mau, mas porque tinha fome”. Buñuel disse também que faz filmes mais para seus amigos do que para o público. O “público” é que é, na opinião de Buñuel, convencional, tradicional, pervertido. “Não é minha culpa”, afirma Buñuel, “mas da sociedade”. É muito difícil e raro, de acordo com o cineasta, quem consiga fazer um filme que agrade tanto aos amigos quanto ao “público”. “De minha parte”, decreta Buñuel, “nunca pretendi fazer filmes para educar o ‘público’’. O protagonista de Nazarin é um padre, mas poderia ser um cabeleireiro ou garçom, explicou Buñuel. “O que me interessa nele é que é fiel a suas idéias, que elas são inaceitáveis para a sociedade e que, após suas aventuras com prostitutas, ladrões, etc... , elas o conduzem a uma condenação sem recurso pelas forcas da ordem...” (33)



(...) Buñuel é um homem livre. 
Ele considera, portanto, que os
outros devem ser como ele. Essa
é a razão porque ele às vezes
recusa-se  a  se  explicar”
 

Ado Kyrou (34)


Notas:

Leia também:

Buñuel, o Blasfemador (I), (final) 
Hiroshima Meu Amor (I), (II), (final)
A Nostalgia de Andrei Tarkovski (I), (II), (final)
A Trilogia de Valério Zurlini
Yasujiro Ozu, o Tempo e o Vazio
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)

Este artigo é uma versão de A Religião no Cinema de Luis Buñuel, originalmente publicado na Revista dEsEnrEdoS, ano II, nº 6, 2010

1. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.). Luis Buñuel. Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2005. P. 87. 2. SADOUL, Geoges. SADOUL, Geoges. Buñuel, Viridiana e Alguns Outros (1962) In BUÑUEL, Luis. Viridiana. Tradução de Saul Lachtermacher e José Sanz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. P. 10.
3. Idem, p. 22.
4. KYROU, Ado. Le Surrealisme au Cinema. Paris: Éditions Ramsay, 2005. P. 273.
5. BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009. P.330.
6. SADOUL, Geoges. Op. Cit., pp. 29 e 33.
7. KYROU, Ado. Op. Cit., p.269.
8. BUÑUEL, Luis. Op. Cit., 1968. P. 241 ; Op. Cit., 2009. P. 331.
9. ROCHA, Glauber. O Século do Cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. P. 181.
10. BUÑUEL, Luis. Op. Cit., 1968. P. 214.
11. KYROU, Ado. Op. Cit., p. 260.
12. BUÑUEL, Luis. Op. Cit., 1968, pp. 215-7.
13. ROCHA, Glauber. Op. Cit., p. 182.
14. GALE, Matthew (ed.). Dali and Film. London: Tate Publishing, 2007. Pp. 86 e 90. Catálogo de exposição.
15. Idem, p. 95.
16. ROCHA, Glauber. Op. Cit., p. 172.
17. GALE, Matthew (ed.). Op. Cit.
18. BUÑUEL, Luis. Op. Cit., 2009. P 337.
19. GALE, Matthew (ed.). Op. Cit. p 96.
20. KYROU, Ado. Op. Cit., pp.269-70.
21. GALE, Matthew (ed.). Op. Cit., p. 99.
22. FERNANDES, G. A Slice of Buñuel. Transflux Films, 2004. Documentário incluído nos extras do dvd lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, contendo Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro.
23. SADOUL, Geoges. Op. Cit., p. 22.
24. KYROU, Ado. Op. Cit., p. 270.
25. SADOUL, Geoges. Op. Cit., pp. 31-2.
26. ROBINSON, David. Artigo na revista Sight and Sound (1962) In BUÑUEL, Luis. Op. Cit.,1968. Pp. 220-1.
27. REBOLLEDO, Carlos. Buñuel e o Romance Picaresco. In BUÑUEL, Luis. Op. Cit., 1968. P. 40.
28. KYROU, Ado. Op. Cit., p. 271.
29. REBOLLEDO, Carlos. Op. Cit., p. 42.
30. Idem, p. 43.
31. GALE, Matthew. Op. Cit., p. 90.
32. KYROU, Ado. Op. Cit., p. 271.
33. SADOUL, Geoges. Op. Cit., pp. 32-3.
34. KYROU, Ado. Op. Cit., p. 262. 


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