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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

13 de mar. de 2010

Wim Wenders e a Humanidade Perdida (II)

No Decurso do Tempo (II)



Para começar
a tentar compreender
a solidão
, pelo menos é
preciso não
se entediar consigo mesmo





Utopia e Solidão Feliz

“Por que você não volta para sua mulher, se você não está agüentado ficar sem ela?” Pergunta Bruno a Robert. “Impossível, ele responde, não sou mais eu mesmo quando fico com ela”. Robert se ressente da invasão de Bruno e dispara, “Você nem sabe do que está falando. Você está sentado num caminhão como numa casamata [um bunker] e faz palestras sobre a solidão”. A discussão, regada a uísque no posto militar norte-americano abandonado na fronteira das Alemanhas, termina numa briga onde eles liberam tudo o que não foi dito durante a viagem. (imagem acima, no final do filme os dois seguem caminhos separados mas que ainda se cruzam uma última vez, Bruno no caminhão e Robert no trem; ao lado, Bruno durante seu monólogo)

Em seguida, mais calmos, conversam sobre suas relações com as mulheres. Segue-se um monólogo de Bruno que esclarece a ausência de mulheres no cinema de Wim Wenders (pelo menos, retruca Boujut, até a aparição de Jane em Paris, Texas, 1984). Esta ausência, Boujut ressalta, que contribui para a dor, o isolamento e a angústia de seus personagens masculinos. “(...) Qualquer mulher [mexe com meus sentimentos]”. “(...) Não quero me entregar a mais nenhuma mulher. Sei que poderia ser outra, e não a que está comigo. Não sei viver com uma mulher (...)”. “(...) É claro que desejo me unir a uma mulher. Mas também desejo ser eu mesmo, sozinho. E disso não quero abrir mão, nunca mais”. “Tem que saber lidar com esse contraste. Também não acredita quando transa...”, comenta Robert interrompendo a última frase. E Bruno continua, “... por exemplo... que está dentro de uma mulher? Mas você já teve mesmo a sensação de estar junto dela? Eu sempre me sentia só; só, mas com uma mulher. Muito, muito só ”. O próprio Wenders afirmou que só conheceu homens e mulheres que viveram relações que terminaram. “Estou falando daqueles que estão nos trinta e que tem atrás deles catástrofes, ou estão diante delas, ou dentro delas” (1).

O homossexualismo seria a solução se indivíduos e casais heterossexuais estão em crise? Este tipo de pergunta faz algum sentido ou seria apenas mais uma conclusão machista? Robert e Bruno, dois homens sozinhos durante um filme de mais de duas horas e meia, dormem num caminhão e num posto militar abandonado (imagens ao lado e acima) e admitem problemas na convivência com o sexo oposto (imagem ao lado, no posto militar abandonado, Robert, que mais uma vez tenta se comunicar com a ex-esposa de quem não consegue se separar depois de divorciar-se). O que o espectador vai pensar? Entretanto, de acordo com Wim Wenders não é bem está a questão por trás da dupla e do filme:

“A homossexualidade é uma falha total, na medida em que volta ao mesmo sistema de duas [pessoas] numa só. Entretanto, se a sociedade aceitasse a noção de homossexualidade, isso seria uma distração conveniente [entracte raisonnable]. Na realidade, seria preciso ir mais longe, e que venha rápido o tempo onde as pessoas aceitem como uma bênção [conseguirem] estar sós. Hoje em dia, por causa do movimento feminista, as mulheres foram consideravelmente mais longe do que os homens (...). Nada igual existe para o homem, nem mesmo um começo, exceto, precisamente, entre os homossexuais. Em No Decurso do Tempo, a relação entre os dois personagens não é nem homossexual nem tradicional, ela é utópica (...). Percebemos a incapacidade de ambos, sua insegurança afetiva. E os vemos também tentar se afirmar, um e outro, camuflando seus defeitos. Entretanto, ao longo do tempo [no decurso do tempo], eles não dissimulam mais e começam a falar sobre o isso. O que levará a sua separação...” (2)

Quando se chega a admitir que uma relação seja utópica, é porque a pressão da sociedade sobre o indivíduo é tamanha que as pessoas não têm força para assumir suas próprias opções, rendendo-se à pressão social – aos clichês, aos preconceitos, aos comportamentos de pura imitação para serem aceitos no grupo. No caso do filme de Wenders, pessoas sem identidade (e, portanto, sem vontade própria, ou, sem coragem para ter vontade) - talvez por esta razão seja uma “distração conveniente” simplesmente acreditar que se trata de um filme homossexual. Conseguir tolerar-se sem ter que esquecer-se de si mesmo. Robert, Bruno, e mesmo Pauline, talvez já não acreditem nessa utopia. O poeta Ferreira Gullar sugeriu que “não dá para viver na emoção de buscar a utopia”,(...)“ é preciso livrar-se da emoção/pressão do querer para não explodir”.(...)“Se eu ficar vigiando a vida, eu não vivo” (3).

A problemática existencial de Bruno, Robert e Pauline não é incomum – geralmente, é apenas muda (na imagem ao lado, Pauline tenta estabelecer um diálogo com Bruno). Entretanto, no caso do filme de Wenders, existe a articulação com a história conturbada de um país que perdeu a identidade – porque perdeu a guerra e por conta da questão do Holocausto. A solidão da perda de identidade, somada à solidão (involuntária) da perda da identidade nacional, talvez esteja por trás do curto-circuito entre utopia e solidão na Alemanha de Wenders. Em relação à incapacidade de incorporar a solidão no horizonte emocional, o cineasta russo Andrei Tarkovski sugeriu que as pessoas são empurradas para longe dela pelas razões erradas:

“Aprender a amar a solidão. Ficar mais sozinho consigo mesmo. O problema com os jovens é a preocupação com as turbulentas e agressivas ações para não se sentirem sozinhos. E isso é uma coisa triste. O indivíduo deve aprender a ser como uma criança, o que não significa estar sozinho. Significa não se aborrecer consigo mesmo. O que é um indício muito perigoso, quase uma doença” (4)

Porque Mickey Mouse Enlouquece Menos! (5)


Compensando uma vida
 familiar  insatisfatória, a
 cultura   popular   norte-
 americana é como  o  lar
 substituto  que  aplaca a
sede  de  experiências



Em alguns filmes de Wenders como O Medo do Goleiro Diante do Pênalti (Die Angst des Tormanns beim Elfmeter, 1971), Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974) e Movimento em Falso (Falsche Bewegung, 1975), existe apenas mães ou mães substitutas. A questão da rebelião pouco aparece, uma vez que os conflitos pai-filho são quase sempre deslocados, normalmente para rivalidade entre irmãos ou um laço homoerótico ambíguo entre homens (No Decurso do Tempo e O Amigo Americano, Der amerikanische Freund, 1977) – Thomas Elsaesser insistiu nessa tese (6), embora já saibamos que Wenders descartou o homossexualismo. (na imagem acima, à esquerda, Bruno e Robert se divertem com os recados dos soldados norte-americanos no posto militar abandonado; abaixo, à direita, Pauline sorri para Bruno)

Uma exceção é a visita de Robert ao seu pai, quando um conflito não resolvido desde a infância encontra expressão poética na manchete que o filho imprime na prensa do pai (ele distribui um jornal) enquanto este dorme. O artigo acusa o pai de ter afastado o filho e induzido sua mãe ao suicídio – o título: “Como Respeitar uma Mulher” (7). Seu amigo Bruno, por outro lado, visita a casa onde um dia viveu com a mãe, numa casa no meio do rio Reno. Em filmes como Alice nas Cidades, Movimento em Falso, No Decurso do Tempo, O Amigo Americano, Paris, Texas e Asas do Desejo (Himmel über Berlin, 1987), a busca dos protagonistas masculinos freqüentemente está ligada à oposição cultural e nacional entre Alemanha e Estados Unidos.

Todos os filmes envolvem homens confusos viajando por fronteiras e limites. Uma geografia despovoada e uma paisagem desértica, ou mesmo um pedaço de céu, serve como espaço de projeção para ambigüidades e agressões que nunca são expressas diretamente. Os Estados Unidos, em sua dupla função de libertador ofendido (pela agressão nazista), e competidor (pela dominação estabeleceu no pós-guerra), fará o papel de “outro” enquanto oponente, ri val e pai. Um Duplo Vínculo (Double Bind) (8) que em muitos filmes de Werner Herzog foi mitologizado e nos de Rainer Werner Fassbinder foi carregado sexualmente.

A celebrada frase em No Decurso do Tempo (“os Ianques colonizaram nosso subconsciente”) dita quando um dos protagonistas não conseguia tirar uma música pop da cabeça, dá uma pista da identidade potencialmente paranóica ou esquizóide que resulta do deslocamento conflito direto. Não dá mais para dizer o que está dentro ou fora, onde está o eu o outro. A ambigüidade sobressai nesta cena, em que os dois amigos estão num velho posto militar norte-americano abandonado na fronteira. Este momento marca um maior contato físico e a descoberta de uma memória de infância comum durante a ocupação norte-americana do país na década de 50 do século passado.


Esse posto militar marca também a fronteira entre a Alemanha Ocidental e a Oriental, o “mundo livre” e o “comunismo” – No Decurso do Tempo foi filmado em 1976, portanto muito tempo antes da queda do muro de Berlim. A cena sugere que ainda seria preferível ter o próprio subconsciente colonizado por rock’n’roll, chicletes e Mickey Mouse do que ser uma colônia da ex-União Soviética. Como Wenders declarou, se ele não tivesse tido a música e os filmes norte-americanos como salva-vidas, teria enlouquecido na infância. Operando aqui, está um processo de deslocamento e substituição assegura que a Alemanha, e a família Alemã, são o referente implícito.

Bruno e Robert vão e voltam pelas estradas nos campos. Cidadezinhas perdidas ao longo da fronteira com a Alemanha Oriental. O passado e o presente da Alemanha se encontram no pára-brisa daquele caminhão, que parece estar à deriva entre os dois pontos. Como observou Anton Kaes, o Velho Mundo e o novo (geralmente representado pelos Estados Unidos), o contraste entre a terra natal (Heimat) e as terras distantes, é um tema constante em muitos filmes de Wim Wenders – ou pelo menos em filmes como Alice na Cidade e Paris, Texas, onde os títulos já denotam uma tensão entre o lar e o longe (9). Os alemães do pós-guerra já não estavam conseguindo dar sentido a si mesmos.

A certa altura, Robert dá uma olhada no mapa rodoviário e comenta, “na próxima bifurcação, uma estrada leva a aldeia que se chama Sem Poder. É uma estradinha única que leva até lá. Um beco sem saída. Talvez tenha seis quilômetros de ida e volta”. “Não vale a pena, é uma aldeia igual a todas as outras (...)”, retruca Bruno. E continua, “a aldeia vizinha, do outro lado da fronteira (...) chama-se Sem Paz. E o morro [entre elas] se chama...”. “Homem Morto”, responde Robert. “Sem Poder, Sem Paz, Homem Morto! Isso não existe!”, conclui Robert com uma risada. Geografia e metáfora se sobrepõem. “O imaginário nos cerca, sugere Michel Boujut, a viagem é a utopia”. Rodando numa estrada que serpenteia, o caminhão rola no meio da paisagem, acompanhado pelo som de Suicide Road, uma música em estilo tipicamente norte-americano (blues) – mas interpretado por uma banda alemã de Nuremberg (10).



“Eu não quero
ter   razão
,   eu
quero ser feliz”


Ferreira
Gullar




Leia também

Aquele que Sabe Viver
Wim Wenders e o Vídeo no Cinema
Fassbinder: Anarquista Romântico
Antonioni na Babilônia (I), (II), (final)


Notas:

1. BOUJUT, Michel. Wim Wenders. Une Voyage Dans ses Films. Paris: Flammarion, 1986. P. 92.
2. Idem. O grifo é meu.
3. Entrevistado no programa Conexão Roberto D’Avila
, TV Brasil (07/03/2010).
4. Depoimento de Andrei Tarkovski, extraído do documentário O Poeta do Cinema. Tal depoimento está incluído no volume I do Dossiê Tarkovski, dvd lançado pela Continental Home Vídeo, 2004. O grifo é meu.
5. ELSAESSER, Thomas. New German Cinema: A History. London: Macmillan, 1989. Pp. 228-232.
6. Idem, p. 230.
7. BOUJUT, Michel. Op. Cit., p.87.
8. Baseado nas questões de antropólogos como Gregory Bateson, Ronald David Laing desenvolve o conceito em seu trabalho sobre a política das famílias. Uma situação de Duplo Vínculo ou, “uma comunicação patológica”, se desenvolve na interação entre pessoas quando uma mesma mensagem funciona em níveis diferentes, contraditórios, onde duas pessoas recusam ou são incapazes de distinguir os dois planos e fazer uma distinção entre texto e contexto, entre comunicação e meta-comunicação. ELSAESSER, Thomas. Rainer Werner Fassbinder. Un Cinéaste d’Allemagne. Paris: Centre George Pompidou, 2005. P. 83.
9. KAES, Anton. From Hitler to Heimat. The Return of History as Film. Massachusetts: Cambridge University Press, 1989. P. 255n14.
10. Improved Sound Limited: Ralph Nowy (sax tenor) e Frank Baum (guitarra steel). BOUJUT, Michel. Op. Cit., p. 86.


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