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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

21 de abr. de 2009

A Nudez no Cinema (IV): Ingmar Bergman




“Na história
do cinema sueco
,
nenhuma mulher
teve tanto charme
erótico e selvagem
quanto Harriet”

Ingmar Bergman (1)



Mônica e o Desejo

Harri e Mônica (ele 17 e ela 15) resolvem abandonar seus pais e o trabalho. Refugiam-se num arquipélago próximo a Estocolmo. Quando voltam, tentam se integrar numa espécie de vida burguesa, mas tudo acaba numa catástrofe. Bergman, entretanto, sentiu a força da tesoura da censura na Suécia. Foram cortadas três cenas, numa o casal está bêbado (parcialmente cortada), noutras duas eles brigam. Numa dessas, a briga de bêbados acaba em uma cena de amor orgíaca. A censura cortou tudo. Apesar disso, Mônica e o Desejo é um filme muito mais sadio e vigoroso do que os que vieram antes dele, que correspondem a um período de revolta de juventude e puberdade (2).

Um casal de jovens
em busca de liberdade
amorosa e sexual

(mas também da saída
para o conformismo

de uma sociedade
sufocante) (3)


Como se pode constatar, a nudez dos corpos no cinema de Bergman revela, o mais das vezes, mais uma morbidez do que um ritual erótico (4). O cineasta precisaria retroceder aos 6 anos de idade para encontrar uma lembrança de sua relação com a nudez feminina que não estivesse mergulhada em culpa e ansiedade. A exceção seria Mônica e o Desejo (Sommaren med Monika, 1953). Imortalizado em Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959), dirigido pelo francês François Truffaut, na cena em que dois meninos roubam uma fotografia do filme de um cinema (imagem acima), o filme de Bergman mostra uma nudez solar, inocente, naturista e sem culpa.

O cinema
de Bergman

consegue filmar
um corpo sem
máscaras em
Mônica e
o Desejo

Jean Breschand


Apenas dois planos do filme mostram a nudez de Mônica, mas eles são capazes de cristalizar o filme inteiro em alguns segundos. Sua volta no final mostra que eles são centrais. Mônica e o Desejo não têm sombras, a nudez está às claras. O que não quer dizer que está explícita, a força de Bergman está em colocar o espectador em posição de ver uma jovem mulher ter prazer com a própria nudez, mas sem a exibir (5). Alguns lembrarão de Mônica por uma imagem no prólogo de Persona (1966), quando num desenho animado uma mulher com os pés na água lava os seios. Na manhã do primeiro dia de fuga, Mônica sai do barco e caminha até uma árvore (urinar?), em seguida vai se lavar na beira d’água (imagem acima).


Mônica e
o Desejo
não
afasta de nossos

olhos o outro lado
da liberdade sexual
:
uma gravidez não
planejada


Quando Mônica fica nua pela primeira vez na presença de Harri, ela é vista a partir de dois olhares, o do namorado e o da câmera (que é o do espectador). Em primeiro plano, Mônica surge da parte debaixo do quadro, cruza a paisagem e começa a tirar seu pulôver, revelando sua axila não raspada e seu grande peito escondido no sutiã e sua calcinha. Agora um close em Harri, que a segue com os olhos, sugere de maneira muito recatada que ela passa sobre ele de maneira nada recatada, para ir banhar-se inteiramente nua numa posa de água do mar nas pedras próximo ao mar. Mas nós a vemos de costas quando Harri se aproxima para acariciá-la nos ombros. Quando Bergman passa ao contracampo (quando inverte sua posição para ficar de frente para ela), os seios de Mônica são cuidadosamente afastados dos olhos do espectador.

O olhar
do espectador
procura se
transferir para
o de Harri
atrav
és dos
olhos da
imaginação

Quando ela corre nua na direção da banheira natural na rocha, teremos aí a única imagem onde se pode vê-la inteiramente nua – de costas. No final do filme, quando Harri para diante de um espelho e relembra seu verão com Mônica, Bergman não mostra a cena em que a vemos passa sobre ele – justamente, pois são as lembranças dele e não as nossas, mas mostra por mais alguns segundos a seqüência, enquanto a vemos de costas descer pelas pedras até uma banheira natural. Portanto, conclui Bergala, trata-se de um filme impar na carreira de Bergman, onde ele se entregou a um erotismo quente, com imagens distantes de seus enquadramentos protestantes habituais em relação à nudez e a sexualidade.


A
sensualidade

inocente de
Mônica e
stá
de braços

dados com
sua imaturidade


Harriet Andersson, ela foi Agnes morrendo em Gritos e Sussurros, e a Mônica sensual e imatura de 15 anos em 1953. Vinte anos as separam, mas o corpo continua no centro da questão. Durante as filmagens de Mônica e o Desejo, Bergman se apaixona pela jovem atriz e filma algumas das seqüências mais liberadas de sua obra, as únicas que não falam de sofrimento, ansiedade e morte. Entretanto, mesmo na euforia, Bergman não seria capaz de filmar um nu total sem se colocar questões morais e estéticas. Ele não vai mostrar a intimidade da jovem atriz, também sua amante, ao espectador. Curiosamente, em seu próximo filme, Uma Lição de Amor (En Lektion i Kärlek, 1954), Harriet fará o papel de uma menina que prefere ser menino.

A censura
sueca
passou
a tesoura em
Mônica e o Desejo
,
mas deixou duas
cenas memoráveis
,
e o mais importante
:
o rosto de Mônica


Para Jean Breschand, Bergman filma um corpo sem máscara em Mônica e o Desejo. Entretanto, pelo menos em relação a certo famoso close do rosto de Mônica, Jacques Aumont acredita que Bergman captou o momento em que um rosto se torna uma máscara. Enquanto Harri está trabalhando fora da cidade, Mônica está no bar fazendo mais do que passar o tempo. A câmera vai se aproximando dela, a menina-mulher se vira em nossa direção e nos encara sem sequer piscar os olhos durante alguns segundos (imagem abaixo). Certamente, não é o primeiro close de rosto do cinema onde um personagem encara o espectador, mas só Bergman compreende que esse olhar é capaz de transformar um rosto numa máscara que o impedirá de exprimir sentimentos (6). Não conseguimos decidir se aquele olhar traduz a perda da esperança ou se Mônica está perguntando: “você pensa que sabe o que eu estou pensando?”



Bergman faz
muitos closes em
seus filmes
. Pelo menos
uma coisa sobre o corpo
ele descobriu: o rosto
está sempre n
u





Notas:

Leia também:

A Nudez no Cinema (V)

1. BJÖRKMAN, Stig. O Cinema Segundo Bergman. Tradução Lia Zats. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. P. 63.
2. Idem, p. 61 e 65.
3. AUMONT, Jacques. Ingmar Bergman. “Mes Films sont L’explication de mes Images”. Paris: Cahiers du Cinema, 2003. P. 30.
4. BERGALA, Alain. Bergman In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. Pp. 53-7. Exceto onde for especificado, o artigo resume o verbete.
5. BRESCHAND, Jean. Sommaren Med Monika. In BERGALA (et alii). Op. Cit., p. 356.
6. AUMONT, Jacques. Op. Cit., pp. 85-6.

20 de abr. de 2009

A Nudez no Cinema (III): Ingmar Bergman




Uma imagem
vinha   à   mente
de Bergman: quatro
mulheres   de   branco
num quarto vermelho.
Depois do filme pronto
ele compreendeu que
o tema era sua mãe,
que está nas quatro
e em nenhuma ao
mesmo tempo (1)



Gritos e Sussurros

Na opinião de Bergala (2), Gritos e Sussurros (Viskningar Och Rop, 1972) é um dos maiores filmes do cinema sobre o tratamento dos corpos – essencialmente, corpos de mulheres. A nudez é um dos estados do corpo mostrados por Bergman, nudez que pode ser a única força de comunicação quando não é mais possível traduzir o próprio sofrimento em palavras – o corpo é capaz de dizer o indizível. Agnes está à morte, assistida por suas duas irmãs e uma criada (a única de quem ela recebe atenção e afeto) (imagem acima). Após uma crise violenta, elas fazem uma limpeza em Agnes que viria a ser seu último prazer físico. Bergman a mostra de costas, discreto e pudico (imagem abaixo). Sofrimento e doença, Bergman filma de frente.



Bergman foi educado
numa atmosfera  hostil 
à sexualidade, onde tudo
que se
aprendia sobre as mulheres estava envolto
em
fascínio e medo (3)



A dor será filmada de frente, o espectador não poderá escapar dela. A doçura, as carícias e a sensualidade, se filmam de costas e de forma pudica. Quando ela morre, o lençol branco é retirado para que seu corpo seja alinhado, sua camisola esticada até os pés e o lençol é recolocado. Para filmar esta cena, Bergman se coloca na posição da cabeça de Agnes, quase no ponto de vista da morta. Como se ela pudesse assistir ao que se faz de seu corpo uma vez que a alma o abandonou. Nesta seqüência do nu fúnebre, só a compaixão tem lugar, qualquer outra emoção foi banida.

(...) Muito   cedo
as mulheres foram
para   mim   um   país

desconhecido que decidi
descobrir   com   o
entusiasmo de um
explorador”(4)



Jacques Aumont tende a minimizar o elemento biográfico nos “filmes de mulheres” de Bergman (5). Sua intenção é boa, mas talvez esteja excessivamente preocupado em centralizar os personagens alter ego do cineasta em personagens masculinos, não permitindo que perceba a importância do feminino na biografia do cineasta. Além do mais, Bergman é direto, existe uma cena autobiográfica onde ele é representado por uma menina. Escondida atrás de uma cortina branca ela olha sua mãe. Quando mãe a descobre, ela pensa que vai ser repreendida, mas acontece o contrário: sua mãe a beija. Essa mãe representa a do próprio cineasta (6).


(...) Na  verdade,
o   que   existe   são
só problemas humanos
.
Não há questões puramente
masculinas ou [...] femininas como pensava antes (...)

Ingmar Bergman (7)


Segundo Bergala, do ponto de vista autobiográfico, Bergman tem algo em comum com Jean-Luc Godard. Além do fato de o primeiro ser filho de pastor protestante e o segundo ter como pai um médico também protestante, os dois cineastas mostram a nudez de forma direta e até fria. A nudez para eles constitui apenas o estado menos artificial do corpo, que revela indiferentemente o esplendor ou a miséria de um personagem, seja quando ama, na alegria, na desgraça e doença, no sofrimento e na morte.


Bergman nega-se
a comentar  os 
cacos de
vidro:   “Cada   um   pode
interpretar a cena como

bem entender!” (8)




Em Gritos e Sussurros existe uma cena de nudez que é tudo menos erótica. Durante um jantar, Karin, esposa frustrada, está em companhia de seu marido. A tensão é tal que ela aperta uma taça de cristal na mão até que ela se quebra. Mais tarde ela comenta que “tudo não passa de uma série de mentiras”. Karin leva um caco consigo para o quarto, onde se despe com a ajuda da criada, que olha para ela e espera. Agressiva, Karin ordena que Anna, a criada, não olhe. A criada abaixa os olhos, mas volta a olhar. Karin remete a ordem e dá uma bofetada nela. Em seguida, Karin pede perdão, mas Anna se afasta. Karin ordena secamente que a criada continue retirando a roupa dela. Já de camisola, Karin vai para a cama.

Segundo Bergman,
a escola ensina muito
,
menos por que
odiamos
uns aos outros
. O “germe mofado”do puristanismo
nos impede de entender
a alma e o espírito
(9)



De pernas abertas na cama e de frente para o marido, Karin mostra sua vagina, que cortou com o caco de vidro. Impassível, como, aliás, esteve durante o jantar, ele assiste a cena enquanto Karin leva aos lábios os dedos molhados de sangue e vemos sua língua tocá-los. Essa nudez, após a constatação de que “tudo não passa de uma série de mentiras”, torna-se o momento do surgimento da verdade em toda sua complexidade. A verdade é que seu corpo de mulher madura está em seu último momento de glória; a verdade da vergonha que ela experimenta diante da criada por deixar-se prender numa tal mortificação de sua vida de casada; a verdade de sua injustiça e orgulho de classe na bofetada; mas também a verdade de seus sofrimentos morais e frustrações sexuais.






Ingmar Bergman
é   Ingrid  Thulin



  
O Que Pode o Corpo de Ingrid Thulin?

Aprendemos definitivamente com esta seqüência que a nudez para Bergman está mais do lado do espelho da alma (e de preferência daquilo que se pode ver de escuridão e sofrimento nessa alma) do que do lado do desfrute e do impulso erótico. Seja como for, nesta seqüência a nudez pode resistir a todas as explicações de sentido. A nudez desse corpo de mulher é uma aparição opaca, um buraco negro do sentido. A ficção termina e o espectador é confrontado coma própria atriz: é Ingrid Thulin que se doa ao filme, seu corpo de mulher, sem máscara protetora de Karin, sua personagem. Por uma estranha alquimia, Karin se beneficia da generosidade de Ingrid.

“Infelizmente,
somos e continuamos a
ser todos analfabetos em
matéria de sensibilidade e
de sensação moral. Todos.
Bloqueamos nossos
sentidos”

Ingmar Bergman (10)

Bergman não se importa em inserir traços autobiográficos em personagens femininas, para ele o que existe são os seres humanos. Essa afirmação levou Nils Petter Sundgren a perguntar ao cineasta: “então, você pode dizer: eu sou Ingrid Thulin?” O cineasta respondeu que, a rigor, sim (11). De acordo com Aumont, é preciso alguém profissionalmente e psicologicamente muito competente para suportar o que Bergman pediu à Ingrid em O Silêncio (masturbação), em O Rito (estupro), em Gritos e Sussurros (auto-mutilação da vagina), em Depois do Ensaio (louca e alcoólatra).

Entretanto, argumenta Aumont, se ela não se masturba realmente, se não é realmente violada, não mutila o próprio sexo, e não é uma alcoólatra, a atriz desempenhou esses papeis com um comprometimento de todo o seu corpo – que não se contenta em recitar, mas age. Descrevendo os atores bergmanianos, Aumont afirma que eles e elas são um misto de intensidade e inteligência. São pessoas que através de sua prática começaram a responder à eterna questão: “o que pode um corpo?” O ator bergmaniano deverá ultrapassar a dicotomia cartesiana (intensidade: emoções x inteligência: razão). Como a própria Ingrid Thulin disse, ela chorou em Depois do Ensaio (Efter Repetitionen, 1984) não porque estivesse comovida, mas porque devia chorar: o corpo tem uma memória (12).

Nudez não é Problema, é Solução

Nunca foi fácil para Bergman pedir que seus atores e atrizes ficassem nus. Em seu livro Imagens, Bergman faz um comentário sobre A Hora do Lobo. Na cena em que Johan é atacado pelo pequeno demônio que o morde, os dois deveriam estar nus. Mas Bergman confessa que não conseguiu pedir a Max von Sydow que se despir-se, embora afirme que se os dois atores estivessem nus a cena seria de uma clareza brutal. Bergala nos lembra que esse arrependimento tardio de Bergman surge sempre que existe nudez, porque coloca em jogo o sofrimento, a angústia, a tentação sexual, a morte, o mal. A conclusão do próprio Bergman é definitiva: “Que minha educação tenha fornecido um terreno fértil para os demônios da neurose, disso não há nenhuma dúvida”.


Notas:

Leia também:

A Nudez no Cinema (IV)

1. SUNDGREN, Nils Petter. Gritos e Sussurros. Entrevista televisionada, 1973. In BJÖRKMAN, Stig (et alii). O Cinema Segundo Bergman. Tradução Lia Zats. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. P. 230.
2. BERGALA, Alain. Bergman In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. Pp. 53-7. Salvo quando indicado, artigo resume o verbete.
3. SUNDGREN, Nils Peter. Op. Cit., p. 232.
4. Idem.
5. AUMONT, Jacques. Ingmar Bergman.Mes Films sont L’explication de mes Images”. Paris: Cahiers du Cinema, 2003. P. 71.
6. SIMA, Jonas. Gritos e Sussurros. Entrevista pelo telefone no dia do lançamento do filme na Suécia In BJÖRKMAN, Stig (et alii). Op. Cit., p. 227.
7. SUNDGREN, Nils Peter. Op. Cit., p. 236.
8. SIMA, Jonas. Op. Cit.
9. Ibidem, p. 229.
10. Idem.
11. SUNDGREN, Nils Peter. Op. Cit.
12. AUMONT, Jacques. Op. Cit., pp. 76-7.


18 de abr. de 2009

A Nudez no Cinema (II): Ingmar Bergman

“A verdade nua e crua é
que vivo continuamente na
minha infância
(...). Descolo-me a
uma
velocidade incrível, pois no
fundo vivo permanentemente
em me
u sonho e faço
visitas à realidade”

Ingmar Bergman (1)

A Nudez Feminina nos Subterrâneos de um Homem

De acordo com Alain Bergala (2), a relação do filho de pastor protestante chamado Ingmar Bergman com a nudez é temperada por culpa, erotismo e morte. É o próprio Bergman que nos conta, em seu livro Lanterna Mágica, o que aconteceu quando ele tinha 10 anos de idade. Seu pai era pastor num hospital e eles viviam por lá. O pequeno Bergman é amigo do jardineiro, que o apresenta ao necrotério. Certo dia, a porta bateu e Bergman ficou sozinho lá dentro, rodeado de cadáveres. Ele logo notou o corpo de uma mulher jovem coberta por um lençol. Ao invés de pânico, Bergman foi tomado por um “desejo violento”.

Ele se aproximou dela, retirou o lençol e viu aquele corpo nu com um curativo que começava na garganta e chegava aos pêlos pubianos. Bergman a tocou no ombro e no pequeno seio flácido. Notou seus dentes brancos entre os lábios e o sexo entre as pernas – que ele afirma não ter ousado tocar. Cadáveres e corpos vistos por partes freqüentarão obsessivamente a cinematografia de Bergman.

Está Tudo Lá

“Que minha
educação tenha
fornecido um terreno
fértil para os demônios
da neurose, disso
não há nenhuma
dúvida”

Ingmar Bergman

O famoso prólogo de Persona (1966) constitui uma tentativa de exorcizar essa cena inaugural. Neste caso, um cadáver de mulher velha irá substituir o da jovem. Vários corpos são mostrados em close de rostos, de narizes e de mãos. Bergman aparece (fora do necrotério) na pele de um menino folheando um livro. Ele está deitado e coberto por um lençol como se estivesse ele próprio morto (imagem acima). Em seguida, tenta tocar a face das duas protagonistas do filme que serão projetadas ao fundo, ocupando toda a tela. De imediato lembramos de outro necrotério da filmografia Bergmaniana, desta vez nada metafórico, em O Ovo da Serpente (Das Schlangenei, 1977). (imagem abaixo, à direita)


Em A Hora do Lobo (Vargtimmen, 1968), voltamos ao necrotério, trata-se da seqüência onde Verônica está deitada nua numa mesa de autópsia como morta. Johan retira o lençol e toca o corpo dela. De repente, ela se levanta e começa a rir (imagem ao lado). No cinema de Bergman, lembra Bergala, é comum que o enquadramento em close e a montagem transformem um corpo em cadáver potencial. Em O Silêncio (Tystnaden, 1963), o sobrinho se aproxima de sua tia adormecida. Ele olha de muito perto, por fragmentos, em close e por ângulos tão raros que o corpo transforma-se em algo totalmente estranho. Mas nós só podemos imaginar tudo isso, pois Bergman não mostra o ângulo de visão do menino. (imagem acima)


A fronteira entre a nudez e a morte será sempre frágil no cinema de Bergman. Em Da Vida das Marionetes (Aus den Leben der Marionetten, 1980), essa equivalência nudez-morte está patente na mente de Peter. Ele acabará por matar Ka, uma dançarina de strip-tease, logo após um show. Esse “curto-circuito emocional”, nas palavras do psiquiatra de Peter, acontece no cruzamento de duas imagens cujo ponto de interseção é a nudez da mulher. Antes de tudo, Peter se vê assassinando Katarina, sua esposa. Ele descreve três variações da cena, mas todas possuem em comum a nudez de sua mulher.

Primeira versão: Katarina sai nua do banheiro. Peter está na cama e estende a mão para ela, que sorri... Segunda versão: Peter está em seu escritório e quer matá-la enquanto ela vem em sua direção com os cabelos humidos e sorrindo. Terceira versão: a porta do banheiro está aberta e Peter pode vê-la de onde está. Ela está nua, penteando o cabelo e andando para um lado e para o outro, ela se olha no espelho. Peter diz que sempre gostou de olhar sua esposa nua. O fantasma que habita essas três versões se atualizará quando ele encontrar Ka, cujo trabalho é precisamente mostrar o corpo, cujo o nome é o diminutivo do de sua esposa. (imagem ao lado, Ka é perseguida por Peter em Da Vida das Marionetes)


A nudez, nos filmes de Bergman, é mais mortal na medida em que está exposta à luz. Antes de matar, Peter pede à prostituta que diminua a luz, mas ela diz que não é possível, pois se trata de um defeito que ninguém quer consertar. Luminosidade que encontramos também em A Fonte da Donzela (Jungfrukällan, 1960), onde o corpo muito branco do cadáver de Karin estuprada e assassinada foi filmado como uma nudez superexposta, muito luminosa naquela paisagem florestal sombria. Como se ela estivesse ainda mais nua por conta dessa luz dolorosa que machuca o olhar. O garoto que assistiu a tudo e que fica sozinho com o cadáver recobrirá o corpo com um pouco de terra, menos para enterrá-la do que para fazer parar o fascinante e terrível clarão dessa nudez mais que nua.

Notas:

Leia também:

A Nudez no Cinema (I), (III)

1. BERGMAN, Ingmar. Imagens. Tradução Alexandre Pastor. São Paulo: Martins Fontes, 1996. P. 22.
2. BERGALA, Alain. Bergman In BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs) Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque. Pp. 53-7. O artigo resume o verbete.


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