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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

18 de dez. de 2016

As Mulheres de Andrei Tarkovski (II)

Hari



“Para   [Stanisław]  Lem,  a  situação  representada
pelos visitantes, especialmente Hari, é uma oportunidade
para sondar o que se entende por identidade (...)(1)

Pensamento em Carne e Osso
Em 1972 o cineasta soviético Andrei Tarkovski lança Solaris (Solyaris), ficção científica que muitos consideram uma resposta a 2001: Odisseia no Espaço (direção Stanley Kubrick, 1968). No filme de Tarkovski, o psicólogo Kris Kelvin é enviado da Terra para uma estação orbital que observa o planeta Solaris, com o objetivo de substituir um ocupante morto em circunstâncias obscuras e investigar. Logo descobre que os outros ocupantes estão quase loucos e que estranhas presenças habitam o local. Uma dessas criaturas, a morena Hari (ou Khari), passa a assombrar o próprio Kelvin. Curiosamente, o psicólogo a conhece, pois ela é uma espécie de cópia de alguém que habitou seu próprio passado. O oceano que cobre o planeta é capaz de ler a mente dos ocupantes e realizar seus desejos ocultos – no caso de Kelvin, sua culpa em relação ao suicídio de Hari. Stanisław Lem (1921 - 2006), escritor polonês autor do livro no qual Tarkovski se baseou, já havia sugerido alguém como Hari dois anos antes (seu Solaris é de 1961). Em The Investigation (Śledztwo, 1959), o inspetor pergunta como seria se alguém construísse uma boneca que pudesse falar, andar, sangrar, experimentar a infelicidade e a morte. Posteriormente, o detetive chefe da investigação sugere que uma raça alienígena esteja na origem dos desaparecimentos de corpos, os quais seriam reanimados e estariam perambulando entre os humanos coletando informação. Seja na literatura ou no cinema, mulheres artificiais de origem alienígena investigando a cultura humana não são incomuns na Ficção Científica, especialmente quando consideramos o viés puritano, misógino e machista que pauta o gênero. Na opinião de Mark Bould, Hari não escapa de carregar os traços de tradições culturais misóginas. De fato, a descrição que Tarkovski faz de Hari é bastante próxima da visão da mulher que o cineasta esboçou durante uma entrevista em 1984 à Irena Brezna.  


Hari tem muitos pais na literatura russa: Alexander Pushkin, 
Nicolai Gogol, Mikhail Lermontov, Ivan Turgenev. Tudo muito antes
da  Maria-robô  que Fritz Lang levou às telas com Metropolis

Após chegar à estação orbital e pouco tempo depois de fazer contato com dois cientistas membros da tripulação e ver uma mulher de camisola caminhando pela nave, Kelvin se deita na cama e adormece num cenário que passou do colorido para o preto e branco. De repente, a cor volta e aos poucos percebemos que a imagem estranha é o close-up do rosto de Hari, que vai tomando forma na medida em que se afasta. Esta é a primeira aparição da “Hari espectral”. Eles se beijam e ela se deita ao seu lado. Está confusa, não consegue encontrar os sapatos, não reconhece a si mesma na fotografia dela que Kelvin trouxe até olhar para seu reflexo no espelho. Ao tentar tirar o vestido fica claro seu caráter de cópia, pois sua roupa é apenas superficialmente igual à da Hari verdadeira no pensamento de Kelvin – o fecho do vestido é apenas um simulacro, ele terá de cortar o pano com uma tesoura. Lá pelas tantas, tenta se livrar dela colocando-a num foguete direto para o espaço sideral. Não adiantou nada, pois na manhã seguinte ela reaparece, corta seu vestido (parece existir uma memória residual), deita-se nua ao lado dele e fazem amor - a Hari-cópia não tem capacidade de dormir, apenas simula. No dia seguinte, Kelvin retira o xale que já estava no local quando ela chegou e que é idêntico ao que ela estava usando. Logo que ele sai do quarto e fecha a porta de metal, Hari começa a tentar sair. Mas ela não sabe abrir a porta e acaba abrindo um buraco. Kelvin vai buscar curativos, descobrindo ao voltar que as feridas dela já estão sarando. Não parece ser possível para Kelvin se afastar de Hari (2). O filósofo e psicanalista Slavoj Žižek remete em parte ao psicólogo misógino Otto Weininger (1880-1903) para explicar a interação entre Kelvin e ele mesmo (ou seja, Hari):

“(...) Kelvin compreende que Harey é uma materialização de suas fantasias traumáticas mais íntimas. Isso explica o enigma das estranhas lacunas de memória de Harey: ela não sabe tudo que uma pessoa normal deve saber, porque não é uma pessoa normal, mas uma mera materialização da imagem fantasmática que ele tem dela com toda a sua inconsistência. O problema é que, precisamente porque Harey não tem uma identidade substancial própria, ela adquire o status do Real que persiste eternamente e regressa ao seu lugar. Como o fogo nos filmes de [David] Lynch, ‘caminha com o herói’ para sempre, agarra-se a ele e nunca o abandona. Harey, esse frágil espectro, pura aparência, não pode ser eliminada. É uma morta-viva que volta eternamente ao espaço entre as duas mortes. Não estaríamos de volta então à ideia antifeminista weiningeriana clássica da mulher como sintoma do homem, uma materialização de sua culpa, de sua queda no pecado, que só pode libertá-lo (e libertar a si própria) suicidando-se? Desse modo, Solaris baseia-se nas regras da ficção científica para encenar na realidade, para apresentar como um fato material, a noção de que a mulher apenas materializa uma fantasia masculina. A posição trágica de Harey é que ela adquire consciência de que está privada de toda a identidade substancial, de que não é nada em si mesma, dado que só existe como sonho do Outro, na medida em que as fantasias do Outro giram em torno dela – é essa situação que lhe impõe o suicídio como ato ético definitivo. Ao tomar consciência do que ele sofre por causa de sua presença permanente, Harey afinal destrói a si própria, ingerindo uma substância química que impede sua recomposição. (A verdadeira cena de horror do filme ocorre quando a Harey espectral volta a acordar da primeira tentativa de suicídio falhada em Solaris: após ingerir oxigênio líquido, fica estendida no chão, completamente congelada; depois, subitamente, começa a se mexer: o corpo contorce-se num misto de beleza erótica e horror abjeto, sentindo uma dor insuportável. Não haveria talvez nada mais trágico do que essa cena de auto eliminação falha, em que a protagonista fica reduzida a uma substância viscosa e obscena que, contra sua vontade, persiste na imagem.) No final da história, vemos Kelvin sozinho na nave, contemplando a superfície misteriosa do oceano de Solaris...” (3)

Sobre Mulheres e Seres Humanos


No  dia  em  que  o  cineasta  japonês   Akira  Kurosawa   visitou  o  set
de filmagem de Solaris, era filmada a sequência  em  que  Kelvin tenta
se livrar de Hari - trancada num foguete direcionado ao espaço sideral

Convencido de que Hari é capaz de sentir dor e de que isso significa alguma coisa, Kelvin vai apresentá-la aos dois cientistas como sua esposa. Sartorius, um deles, zomba da falta de sentido deste “contato emocional” – o contato é, na verdade, com o oceano de Solaris. Steven Dillon observa que a relação entre Kris e sua esposa-perfeita-morta replica a relação arquetípica da plateia com a tela no cinema: existe a realidade fotográfica, imersão sensual e emocional, mas ao mesmo tempo há também o reconhecimento de que essa realidade é um artifício, uma alucinação construída como o próprio cinema, Hari é uma cópia, uma reprodução, uma estranha, um fantasma. Kelvin resolve mostrar para Hari um filme caseiro onde aparecem seu pai, mãe e ele mesmo mais jovem. Depois ele aparece mais velho e podemos ver a verdadeira Hari lançando um sorriso enigmático. “Eu não sou Hari”, diz sua cópia interestelar. “Hari está morta. Ela se envenenou. Eu sou outra pessoa... E ela, a outra, o que aconteceu com ela?”. Presumindo que ela está se referindo à Hari verdadeira e não àquela que ele tentou mandar para o espaço num foguete, Kelvin responde que ela se matou por engano. Depois de uma briga que tiveram, Hari tomou por engano pílulas que ele havia trazido. Para Stanisław Lem, visitantes como Hari foram uma oportunidade para questionar o conceito de identidade, enquanto para Tarkovski o livro do polonês está preocupado principalmente com o encontro entre a mente humana e o desconhecido. Para o cineasta, Solaris é...

“(...) sobre o salto moral de um ser humano em relação às novas descobertas no conhecimento científico. E superar os obstáculos neste caminho leva ao doloroso nascimento de uma nova moralidade. (...) O preço de Kelvin é o encontro cara a cara com a materialização de sua própria consciência. Mas Kelvin não trai sua posição moral [e, consequentemente, ascende] a um nível moral mais elevado” (4)


(...) Kelvin compreende que Harey é uma materialização
de  suas  fantasias  traumáticas  mais  íntimas  (...)” 

Slavoj Žižek (5)

De acordo com Bould, isso fica claro na sequência da biblioteca. O doutor Snaut argumenta que a humanidade não se interessa pelo cosmos, apenas deseja estender a Terra em todas as direções, substituindo a alteridade radical do universo por espelhos para si mesma. Doutor Sartorius discorda, insistindo que o homem foi criado pela natureza e pode aprender suas formas de ser. O homem, afirma Sartorius, está condenado ao conhecimento. Aqui Hari se intromete, para ela Kelvin foi o único que se com portou como humano nas condições inumanas em que estão inseridos. Sartorius a censura: “você não é uma mulher e não é um ser humano... é apenas uma reprodução... uma cópia, uma matrix”. Ela concorda, mas insiste que está se tornando um ser humano e pode ter uma vida independente de Kelvin. Contudo, ela tenta mas não consegue beber um copo d’água - Bould lembra que o cineasta norte-americano Steven Spielberg utiliza a ideia em A. I.: Inteligência Artificial (Artificial Intelligence: AI, 2001): o androide David trava ao tentar comer o jantar para provar que é tão humano quanto o filho real de sua mãe humana. Ainda na biblioteca, Hari fixa o olhar numa reprodução de Caçadores na Neve (1565), de Pieter Brueghels, na parede e pula mentalmente para imagens de inverno do filme caseiro que Kelvin havia lhe mostrado anteriormente. Para Bould, o ponto de vista dela internaliza como se fossem suas as memórias externalizadas de outra pessoa (Kelvin). 


(...) A  posição  trágica  de  Harey  é  que  ela  adquire  consciência
de  que  está  privada  de  toda  a  identidade substancial, de que não
 é nada  em  si  mesma,  dado  que  só  existe  como  sonho  do  Outro, 
na medida em que as fantasias do Outro giram em torno dela  (...)

Slavoj Žižek (6)

A levitação, na sequência a seguir, não acontece por outro motivo senão um breve período de queda da espaçonave, que faz com que eles e outros objetos flutuem. Embora prefigure as levitações mágicas em O Espelho (Zerkalo, 1975), Nostalgia (Nostalghia, 1983) e O Sacrifício (Offret, 1986), evocando também os amantes em ascensão nos quadros de Marc Chagall, é muito mais estranho e nada estático. Bould considera demasiado afetado para celebração de amor e moral de Tarkovski, e poderia melhor ilustrar o sentido de Lem, apontando para um universo totalmente indiferente aos valores humanos. Sua incapacidade de expressar reconciliação ou desfecho romântico é sublinhado pela próxima cena. Hari ingere oxigênio líquido, seu corpo emana vapor e começa a se acinzentar e sua roupa a trincar. Aos poucos, entre convulsões, ela vai voltando à vida – movimentos corporais semelhantes podem ser vistos na esposa do Stalker (Stalker, 1979) e com Adelaide, em O Sacrifício. De fato, é preciso lembrar que as mulheres tem pouca utilidade na ficção de Stanisław Lem, que as considerava uma “complicação desnecessária”. Segundo Bould, embora o escritor tenha dito que produziria uma personagem feminina se fosse necessário, além de Hari a única outra será encontrada apenas no conto A Máscara (Maska, 1976) onde uma protagonista mulher de “admirável beleza” é de fato uma espécie de lagarto monstro ou demônio encarnado numa máquina automática – a quem diga que a tradução para o inglês, idioma de Bould, não dá conta da indeterminação do personagem. É difícil questionar críticas em relação à sua misoginia. Certa vez ele afirmou:

“Trazer mulheres a bordo de uma espaçonave... e não tirar daí nenhuma conclusão narrativa, seja sexual, erótica, emocional, ou qualquer outra, seria uma forma de falsidade. Não faria sentido ter a tripulação em isolamento como dois conventos, um masculino e outro feminino, não é? Mas se eu tenho certo planejamento cognitivo e narrativo para executar, então uma introdução de mulheres pode ser inconveniente, e mesmo contraria a meu plano” (7)

Libido e Ilusão


(...) Solaris baseia-se nas regras da ficção científica para encenar
na  realidade,  para  apresentar  como  um  fato  material,  a  noção
de que a mulher apenas materializa uma fantasia masculina   (...)

Slavoj Žižek (8)

O cineasta soviético não estava muito melhor do que o escritor polonês neste quesito. Na entrevista a Irena Brezna, o cineasta admitiu ser difícil negar a subjetividade feminina, mas ela deveria estar subordinada ou dissolvida no mundo dos homens com os quais se envolveu. O amor dela por ele, Tarkovski continua, deve se manifestar como autossacrifício e uma total devoção ao homem, única maneira das mulheres encontrarem dignidade. Adotando o determinismo biológico mais cru, insistiu que a diferença intrínseca entre homens e mulheres as torna (por natureza) incapazes de existir independentemente deles (caso tentem fazê-lo, não mais constituirão seres naturais). É, portanto, significativo, concluiu Bould, que depois que Hari começa a demonstrar certa independência em relação a Kelvin, ela tente se suicidar duas vezes. Na refilmagem de Solaris por Steven Soderbergh em 2002, Rheya (o novo nome de Hari) chega a apontar que ela só é suicida porque é assim que Kelvin se lembra dela. Outro exemplo dentre muitos que poderiam ser citados para ilustrar a sujeição feminina anterior a Solaris é Four Sided Triangle (direção Terence Fisher, 1953), do famoso estúdio britânico Hammer: Lena têm dois amigos, Bill e Robin; Lena ama Robin, mas se compadece pelo amor de Bill por ela e concorda em deixa-lo fazer uma cópia dela só para ele, mas a coisa não dá muito certo. Embora Hari constitua para Dillon a metáfora perfeita do cinema, muito antes da sétima arte eclodir, a literatura russa já havia construído muitos antecedentes. Encontramos uma mulher espectral Alexander S. Puchkin (1799-1837), em A Dama de Espadas (1833), Nikolai Gogol (1809-1852), em Avenida Niesky (1835), Mikhail Lérmontov (1814-1841) em Shtoss (1841) e Ivan Turgenev (1818-1883), em Os Fantasmas (1864). Na Ficção Científica encontramos uma mulher artificial em Villiers de l’Isle Adam (1838-1889), com L’Ève Future (1886), e Lester Del Rey, com Helen O’Loy (1938). 

“Apenas algumas sequências em Tarkovski trazem a marca da união entre amantes, porque, na maioria das vezes, tais fragmentos amorosos são esquecidos e o desejo submisso. Desta forma, em Solaris, Kris Kelvin tenta fazer desaparecer sua noiva de uma maneira que ele mesmo considera vergonhosa: a coloca dentro de uma pequena nave espacial e a manda para o cosmos; forma mais violenta, senão mais definitiva – a mulher retornará, pois não nos livramos tão facilmente do desejo -, da recusa da história de amor. Gortchakov, em Nostalgia, também abandona uma mulher que se oferece a ele, e encontra refúgio na lembrança e no sonho agitado” (9) 


(...) Solaris é uma máquina que cria/materializa na realidade meu
suplemento/parceiro objeto fantasmático que eu nunca estaria disposto
a reconhecer, embora toda a minha vida psíquica gire à sua volta”

Slavoj Žižek (10)

Para Slavoj Žižek, a relação entre Kelvin e Hari reproduz uma matriz patriarcal da relação entre o homem e a mulher. Ela ocupa a posição de escrava do homem enquanto se equivoca ao considerar sua posição é autônoma. Desta forma, a servidão é tanto maior na medida em que se acredita autônoma quando se comporta de um modo “feminino”, submisso e sensível (como o patriarcado acredita ser a verdadeira natureza da mulher). Para Žižek, quando assumido abertamente por completo, o rebaixamento da mulher enquanto sintoma do homem proposto por Weininger é mais subversivo do que a falsa afirmação da autonomia feminina. “Talvez a atitude feminista por excelência seja proclamar abertamente: ‘Não existo em mim mesma, sou apenas a encarnação da fantasia do Outro’” (11). Numa espécie de contrato subversivo masoquista, quando o servo assume abertamente a posição de servo, então se afirma afetivamente como ser autônomo. É neste sentido que Žižek entende os dois suicídios de Hari em Solaris. O primeiro foi aquele da Hari real do qual Kelvin se ressente. O segundo, da Hari em Solaris, foi o ato heroico de auto-eliminação de sua existência espectral de morta-viva. Enquanto o primeiro suicídio foi uma fuga das dificuldades da vida, o segundo foi um verdadeiro ato ético. Enquanto a primeira Hari foi um “ser humano normal”, a segunda é um Sujeito no sentido mais radical do termo, justamente porque privada dos últimos vestígios de sua identidade substancial (12). Mas o ato ético supremo da Hari espectral não parece ter sido capaz de afastar Kelvin do universo patriarcal:

“Por que a libido precisa do universo virtual das fantasias? Por que não podemos simplesmente gozar diretamente de um parceiro sexual, por exemplo? Essa é a questão fundamental. Por que precisamos desse suplemento virtual? Nossa libido precisa de uma ilusão para se manter. Um dos temas mais interessantes da ficção científica é o tema da máquina do Id. Um objeto que tem a capacidade mágica de materializar diretamente, de realizar em nossa frente, nossos mais íntimos sonhos, desejos e mesmo sentimentos de culpa. Há uma longa tradição disso em filmes de ficção científica, mas, claro, ‘o’ filme sobre a máquina do Id é Solaris, de Andrei Tarkovski. (...) Kelvin descobre o que está acontecendo. Este planeta tem a habilidade mágica de realizar diretamente nossos mais profundos traumas, sonhos, medos e desejos. O lado mais profundo de nossa intimidade. O herói do filme encontra certa manhã sua falecida esposa, que se suicidara anos antes. Então ele realiza não tanto seu desejo, mas seu sentimento de culpa. Quando o herói é confrontado com esse tipo de clone espectral de sua esposa morta, apesar de ele aparentar ser profundamente acolhedor, sensível, reflexivo etc., seu problema é basicamente como se livrar dela. O que torna Solaris tão tocante é que, ao menos potencialmente, o filme nos confronta com essa posição subjetiva trágica da mulher, sua esposa, que sabe que não tem consistência, que não possui um ser completo [: ‘Eu nem me conheço a mim mesma. Quem sou eu? Assim que fecho os olhos já não consigo me lembrar de como é meu rosto’]. Por exemplo, ela tem lapsos de memória porque ela sabe apenas o que ele sabe que ela sabe [: ‘Você sabe quem você é?’, pergunta Hari; ‘Todos os humanos sabem’, responde Kelvin; então ela encosta nele e parece capturar a resposta]. Ela é apenas seu sonho realizado. E seu verdadeiro amor por ele é expresso em suas tentativas desesperadas de se eliminar, bebendo veneno ou sei lá o quê, só para deixar o terreno livre, porque ela supõe que ele queira isso. É relativamente fácil se livrar de uma pessoa real. Pode-se abandoná-la, matá-la etc. Mas de um fantasma, de uma presença espectral, é muito mais difícil se livrar. Ele se fixa em você como uma presença sombria. O que temos aqui é a mitologia masculina mais básica. Esta ideia de que uma mulher não existe por si mesma. Que uma mulher é simplesmente um sonho masculino realizado ou mesmo, como dizem os antifeministas radicais, a culpa masculina realizada. A mulher existe porque o desejo masculino tornou-se impuro. Se um homem purifica seu desejo, livra-se do material sujo, de suas fantasias, a mulher deixa de existir. Ao final do filme, assistimos a um tipo de comunhão sagrada, uma reconciliação dele, não com a esposa, mas com seu pai” (13)

Na época da produção de Solaris, Tarkovski não obedeceu à censura soviética da Goskino quando lhe foi recomendada a supressão da cena do suicídio de Hari – entre outras coisas; de fato, foram quarenta e oito objeções. O cineasta atendeu algumas objeções que lhe pareciam aceitáveis, mas não transigiu sobre o essencial (14) – de acordo com Jean-Luc Douin, Tarkovski não levou nenhuma delas em consideração (15). Caso tivesse sido realizado o corte referente à Hari, poderiam ter conseguido evitar que Žižek enxergasse altruísmo e lampejos de independência nela.


Notas:

1. BOULD, Mark. Solaris. London: Palgrave Macmillan, 2014. P. 77.
2. Idem, pp. 70-82.
3. ŽIŽEK, Slavoj. Lacrimae Rerum. Ensaios Sobre Cinema Moderno. Tradução Isa Tavares e Ricardo Gozzi. São Paulo: Boitempo, 2009. Pp.108-9.
4. BOULD, Mark. Op. Cit., p. 77.
5. ŽIŽEK, Slavoj. Lacrimae Rerum. Op. Cit., p. 108.
6. Idem, p. 109.
7. BOULD, Mark. Op. Cit., p. 81.
8. ŽIŽEK, Slavoj. Lacrimae Rerum. Op. Cit., p. 109.
9. BAECQUE, Antoine de. Andrei Tarkovski. Paris: Editions de l’Etoile/Cahiers du Cinéma, 1989. P. 55.
10. ŽIŽEK, Slavoj. Lacrimae Rerum. Op. Cit., p. 111.
11. Idem, p. 110.
12. Ibidem, pp. 109-110.
13. Observações de ŽIŽEK em seu documentário, The Pervert’s Guide to Cinema. Direção Sophie Fiennes, produzido por Amoeba Film/ Kasander Film/ Lone Star/ Mischief Films, 2006.
14. CHION, Michel. Andreï Tarkovski. Paris: Cahiers du Cinéma/Le Monde, 2007. P. 44.
15. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Paris: Quadrige/Puf, 2001. P. 422.

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